quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Um súbito poder



O sr. Mombertto Luccena perdera o braço por uma besteira monumental. Em um de seus raros momentos em que se dedicava a explicar esse restrito significado filosófico em sua vida, me disse que haveria alguma dignidade em um maneta se a causa de sua mutilação tivesse sido um acidente de trabalho, ou um duelo, ou uma doença degenerativa que tivesse tornado inevitável a remoção de suas raízes patológicas. Mas não em meu caso, Halp, dizia, já sem nenhum compadecimento, segurando o cachimbo com a mão esquerda, justamente a que sobrara em um destro para confirmar o quanto a providência__ ou a ausência dela_, tem inúmeros meios de trabalhar com a insensatez. As pessoas me veem, com razão, como um homem a ser poupado; não importa quem for, se algum de meus fornecedores com quem eu solto os cachorros e falo a merda que quiser, ou se for uma mulher que vem à loja para comprar alguma coisa e descobre que o proprietário não possui um quarto do corpo; todos me veem mas imediatamente fazem o máximo possível para me removerem de seus campos visuais. E eu não os culpo, Halp, dou total razão a eles. Eu posso ter o poder que tiver, a influência em bolsas de valores, ser marchant de importantes gênios das artes, ter contas na Ilha de Man ou um veleiro com as assinaturas no casco de todos os aventureiros mundialmente conhecidos daqui até Aleksandróvski,_a desincumbência que o destino me deu de não precisar mais levar um adendo corporal me torna imediatamente uma nulidade completa. E ninguém gosta de zeros a esquerda, Halp, ele dizia, soltando o bafejo de fumaça odorífica que vinha realimentando no bojo do cachimbo através de calibrados movimentos de influxo com a boca, fazendo uma pausa para me lançar um olhar carregado de dramaticidade, mas cujo significado doutrinário não me era de todo compreensível.
          Apesar de tudo era um belo homem. Podia-se perder uma discussão com ele apenas por se ficar fascinado o observando. Ele aparentava ser um desses paradoxos da inteligência que tem completa ingenuidade sobre si mesmo. À medida que envelhecia, seus traços ficavam mais realçados, percebia-se que toda delicadeza que algum dia ditara o tracejo de suas linhas faciais tornara-se inteiramente condizente com aquele enredo perverso que o destino tinha entremeado na narrativa de sua vida. Seus fartos cabelos encaneceram-se, a petulância francesa do nariz aquilino, que na certa fora alvo de recalques silenciosos em vista da inutilidade de um incremento desses em um maneta, se tornara ainda mais petulante mas agora legitimado por sua áurea de profeta rembrantiano de uma grandiosa decadência bíblica, seus olhos que disparavam rajadas inflamadas de ódio antes de terem se suavizado foram disciplinados por uma astúcia comercial em que uma ironia o posicionava acima e imune a todas as tramoias da ralé no qual ele era forçado a lhe dar todos os dias.
         Era impossível alguém vê-lo e não ficar tocado de alguma maneira com a impressão calada de que ali estava um ser de aparência majestática, cuja degradação brutal de seu lado direito se interromper no ombro acentuava sua imponência através do paradoxo de uma fragilidade que não era imediatamente digerida. Muitas pessoas tornavam a olhá-lo, quando ele não estava se dando conta, para se certificarem que não eram alvo de um engano ocular, e mesmo depois da realidade nua e crua comprovarem o que o fato ditava sem nenhuma dúvida, não saíam  pela porta do escritório do depósito de cereais achando que haviam logrado ou sido logradas por um aleijado. Pois era isso que M. fazia, lograva-os dentro daquele manual particular de sobrevivência financeira que ele nunca havia escrito (e nem o pretendia), mas que me passava algumas de suas leis fundamentais toda vez que saíamos para trabalhar. Um homem viril que passava a segurança de ser capaz de tudo; sereno, rígido de uma maneira que não lhe afetava morais de escritório e éticas de farmácia; alguém que independente do que seria necessário para um canalha autorizado pelos princípios do lucro esquecer o que havia feito de dia para poder repousar a cabeça no travesseiro, ele dormia como um pedra em uma paz que não precisava de nenhuma retórica escamoteadora mas que era uma simples intervenção da natureza; havia lido muito apesar de a impressão ser de que o trânsito atribulado de seu cotidiano não favorecia levar um volume de Eckermann por entre sacas de milho de cem quilos e caminhões aspergindo vapor de diesel não lhe daria a concentração adequada.
         Mas seus conhecimentos eram vastos; citava nomes e eventos históricos no meio de tramoias de comércio em conversas com velhos industriais pançudos e friamente mal-educados, e com uma voz inquebrantável fazia esses senhores desabrocharem impossíveis sorriso marotos achando que se tratava de informações avançadas lhes passadas em surdina. Ele falava com nós, seus funcionários, com uma rispidez que às vezes parecia aristocrática da pior maneira possível, como um senhor de terras russo falaria com seu servo mais preguiçoso, mostrando por detrás das palavras que se tinha aquele resquício de paciência era por ali conter uma censura ainda mais severa que não desejaríamos descobrir; mas a questão era que seus 35 empregados já trabalhavam com ele há anos e nenhum cogitava a ideia de sair dali e, novamente eu digo, isso não tinha a ver com seu aleijamento. Ele tinha esse magnetismo e sabíamos_ era visível de forma imediata_ que ele era humano, que a potestade que ele não acreditava e da qual não fora a perda de um braço que a faria ser a espectadora de seus monólogos estoicos sobre a desgraça que era a vida, não poderia ter errado-- era o que nós pensávamos, mesmo não tendo consciência disso_, algo assim não poderia ter acontecido com alguém que nascera tão pronto para o martírio da existência nessa zona intermediária entre o nada e a aposta infundada em um paraíso, cheia de eflúvios de culpa, traumas, patologias mentais, moléstias de caráter e depravações; a mão de um deus obscuro não havia apontado para ele sem cálculos precisos de que a história magnânima a ser registrada seria cortada no início por uma desistência e nem por um suicídio parcelado em uma vida de oitenta anos, ele iria perseverar e se viraria com tal presente da melhor forma possível.
          Ele perdeu o braço em uma prova infantil. Para ganhar respeito no grupo de machões do bairro, pulou o muro de uma usina abandonada e foi até o centro dela, passando por janelas quebradas e por estruturas de metal arruinadas e incompreensíveis, afim de trazer a tampa da destiladora de cana-de-açúcar e ficou com o braço preso na grade interna. Contou-me isso com um distanciamento desapaixonado, como se tratasse de um ritual de passagem sem muito interesse, como se um cerimonial de núpcias ou o dia em que abriu seu comércio equivalessem em etapas naturais ao sofrimento que aquilo representou por toda a vida para uma criança de 12 anos. Uma vez meu avô narrara no jantar uma pueril história sobre um burro que ele tinha em sua fazenda em Lajes, que empacara num campo de lama que levou seu esforço e de mais dois homens para demover a besta do lugar, e isso me impressionou pela falta de sabor em como uma história poderia ser narrada, a ausência de tramas, a pobreza total de reviravoltas no enredo.
         Quando M. falou daquele evento esquecido, que não dava sinais de fulminá-lo na intermitente volta da lembrança da dor, me voltou o velho burro amuado com os quatro cascos desgastados enfiados na lama, os olhos de azeviche não focando nada mergulhados em uma lamúria incompreendida remoendo suas íntimas filosofias de Platero, e os dois homens e meu avô salpicados até a alma do mesmo barro cuspindo esporadicamente os grossos e rústico pelos que se lhe enfiavam pela boca dando solavancos nas patas e enfiando as caras no traseiro e dizendo urra, vai maldito, e parando para esfregar o suor das testas com a mãos e olharem uns aos outros se rendendo à exaustão além de qualquer xingamento a ponto de um pouco da tristeza do animal lhes contaminar dolentemente o raciocínio. Com a mesma quase proposital intenção de expressar o acontecido mas sem dar-lhe relevância maior que a comportaria uma notificação da trivialidade mais banal. M. me contou a história de seu braço se gangrenando à medida que as horas passavam e ele tinha a certeza de que aqueles garotos broncos, espinhentos, com exalantes odores de excesso de hormônios, não iriam entrar na usina para saberem o que acontecera. Não ouviram seus gritos lá de fora, ou ouviram e não se importaram um centavo. Eu creio que ouviram, ele disse com um acento descendente, olhando para uma lasca do piso e batendo simpaticamente a barra da calça para tirar uma poeira imaginária, mas eles não iriam lá pra me salvar, não fazia parte da ética do jogo. Eram uns ignorantes que só simulavam entender de putas e cerveja e o jeito certo de cobiçar os carros que nunca iriam ter, eram almas inaptas para a alteridade, Halp, seres construídos em uma forja cujo princípio do artesanato em que foram idealizados comportavam pouca massa que não fosse carne, excesso de carne exultante, fremente, sem cultivo, programadas para a explosão e a flacidez no tempo certo.
         Não iriam voltar. Dizia, sem sentimentalismos, sem a nostalgia vingativa ou o recalque. Como eu disse, ele não se gastava em monólogos noturnos debatendo sobre a compreensão inacessível dos propósitos de um deus em que jamais acreditara. Desmaiou após uma hora de dor sem nome, uma dor tão premente e inimaginável que seu cérebro recorrera a ferramentas profundas, enterradas em zonas inacessíveis sedimentadas por séculos de memória armazenada de outras dores perdidas na distância dos seus mais remotos antepassados, para traduzir-lhe o que era aquilo, para que seu espírito não implodisse porque não há mais espaço para novos traumas, todos os traumas já foram suficientemente explorados e utilizados, todas as dores já foram desvendadas e não há como inventar novas dores por mais que seja prolixa a imaginação do destino futuro dessa espécie auto imoladora que é a espécie humana, Halp, de forma que eu apaguei, só fui acordar quando senti alguns homens mexendo com meu corpo, me revirando, perguntando se eu ainda estava vivo. Levaram-me para o hospital público de São Clemente, mas o braço já estava negro igual a uma peça de charque, eu não o sentia mais, havia partido em três lugares e a carne macerada em feridas que ficaram tanto tempo privadas de sangue que estavam em um vermelho pastoso e artificial, como se houvessem pintado e aquilo não fosse admissível na realidade. Amputaram-lhe na altura do ombro e a história tinha terminado, era isso. Aos 12 anos e sem um braço a tarefa não seria nada fácil. Meu pai era carregador de caixas em uma cooperativa do centro, minha mãe cuidava de mim e de meus três irmãos mais novos e às vezes cozinhava em um restaurante polonês que havia no bairro, e eu, predeterminado por essa rígida hierarquia social não tinha um destino melhor pela frente a não ser fazer parte dos honestos e viris trabalhadores braçais, que sustentavam literalmente o peso do que iria preencher as mesas de almoço do país por 12 horas diárias e depois voltava para ser recolhido em hibernação suspensiva em sua casa de dois cômodos até que o dia eternamente renascente o iria acionar novamente em toda sua plenipotência muscular, não sem antes de deitar passar no boteco e beber duas doses calibradas de trigo velho. E agora o prosseguidor dessa tradição se via sem o braço, pela razão mais estúpida de querer impressionar uns descerebrados marcados para serem tão infelizes em suas vidas obtusas e sem sentido quanto ele. Meu pai me olhava com descrédito; suas instâncias de frustração estoica que muitas vezes cambiavam para uma ira violenta não sabiam o que fazer com aquele ornamento rescendido de peso inútil que substituíra seu saudável filho na mesa de jantar; faltavam-lhe as palavras brutalizadas que usava com todos, os xingamentos, as ferramentas virtuosas de machucar que eram seus verbos bem pronunciados e escarrados pela moldura de seu rosto distorcido muito vermelho. Eu o observava pelo canto dos olhos, parado ali imóvel na entrada da cozinha, a boca semiaberta estupefata, reavaliando sua reação e não de todo excluindo a suspeita de que aquilo poderia ser uma peça que a vida lhe pregava, uma espécie de piada sofisticada demais para entender e que não tinha a mínima graça. Meus dois irmãos juntavam lixo e mandava para as caminhonetas de reciclagem particulares, e minha irmã era ainda nova demais para participar de alguma forma de rotina pragmática que não fosse ficar quieta e deixar minha mãe com suas panelas no fogão, e eu me transformara do dia para a noite em um objeto ornamental não desejado. Isso me revoltava, me fazia ter crises compulsivas de choro, M. me disse, sorrindo e soltando um muxoxo ríspido e curto contra alguma rearrumação que por força da distração não se fazia conforme seu desejo em sua mesa de escritório, o que eu não sei se esses movimentos esparsos faziam parte de uma encenação muito convincente de que pouco estivesse aí para o que contava ou se ele era mesmo insolvível a isso tudo, se o ele conseguira mesmo uma privilegiada posição acima da estúpida degradação do tempo. Eu saía para chorar nas escadas do bloco de apartamentos paupérrimo em que morávamos, com muito medo de ser visto, aliás eu passei a ter uma vergonha colossal de que me vissem em qualquer variação de humor, o aleijado, o maneta, o perdedor oficializado sobre o qual já não havia apostas nem que fosse um médio auxiliar de carregamento de cargas suficientemente pouco preguiçoso. Eu fugia de todo mundo, dava a volta pelo quarteirão, a cabeça só não mais baixa porque se sucumbisse à minha humilhação o corpo emborcava para o lado em que lhe faltava aquela porção valiosa. Mas daí me dei conta de algo espantoso, verdadeiramente revolucionário na minha vida: eu fazia de tudo para que não me vissem e as pessoas, ao final das contas, não me viam! De uma hora pra outra, eu passei a ser invisível. Não precisaria me esforçar tanto quanto eu fazia: meu objetivo era alcançado mesmo se eu ficasse estacado em meu canto, apenas observando. Uma vez, no auge da minha aflição por não ser visto, me flagraram chorando sentado nos degraus do porão. Era o porteiro e uma faxineira que passavam por ali não sei atrás de quais arranjos, e, quando se depararam comigo, simplesmente seguiram em frente em seus afazeres, pegando o balde e o esfregão, e se mandaram, apenas desviando-se de mim e fazendo com os olhos uma constatação da minha ocupação física do espaço, uma espécie de cumprimento resquicial, sem dó, sem acusações, sem constrangimento. Antes, quando meu corpo se compunha de todo o porcentual lhe concedido legitimamente pela biologia, havia momentos em que zombavam de meu modo de andar, de meu modo de falar, de minha extrema magreza, mas agora, que tinham o que encarniçar, eles não o faziam. Com o tempo fui alteando o porte, na medida em que me certificava do potencial desse meu súbito poder, e passei a ser realmente feliz com essa minha condição.

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