(phew for a minute there i lost myself ilost myself
Estou num processo de depressão progressiva e minha ação de abrir uma conta no Facebook só fez com que ela ficasse mais grave. Nota-se que minha capacidade de síntese também ficou muito afetada com essa ação, pelo que de imediato se vê na frase acima. Eu abri minha página no F e todo aquele ritual de montagem da minha existência entre os adeptos foi acontecendo, fato que eu contribuí fazendo apenas o que me cabia fazer, que era ficar absolutamente inerte e deixar que o organismo do F fizesse tudo por mim, me incorporasse. Coloquei as fotos que eram para ser colocadas, para que a coisa ficasse minimamente apresentável, algo que executei sem qualquer traço de empolgação, e fui respondendo até onde minha paciência aceitava as perguntas automáticas de praxe. Pronto, eu já tinha um F. Olhei a superficialidade da página, sua grotesca intranscendência, sua gritante breguice, sua fundamental ausência de interesse humano... um desinteresse tão explícito que até quando a máquina me joga suas opções de gelados contatos com outros usuários, ela me informa que fulano "comentou sua foto", pois é aceito irrevogavelmente pelo aparelho que ninguém tem conteúdo suficiente para mostrar a não ser o clichê vazio de uma foto pessoal ortodoxa, sorrisos, poses descoladas, a felicidade em falsete. Pronto, minha impressão amargurada de que ninguém está aí para a porra do outro ficara mais forte. Um bando de coitados tentando ser interessante, inteligente, intrigante, genuíno, charmoso e engraçado. É isso, meu Deus? O quanto eu estou defasado e continuarei assim até a morte, o quanto sou negativo e inadaptável. Acesso meu F, e a jornada se inicia. Antes, a construção de meu quadro de
amigos, e, como não deveria deixar de ser, a necessidade de rebater aquele tanto de pornografia e más intenções que se oferecem aleatoriamente para serem meus amigos. Então a coisa está feita. Sento-me à mesa, abro meu notebook, e acesso
a minha página do F. É um filme de terror. Um pavor fundo. Não dá para ler nada, para ter a empatia e o recolhimento de angariar algum valor com os tantos posts, os tantos links para matérias da hora, para textos de vários jornais do mundo, para cada oferecimento produzido pelas vaidades retumbantes dos
meus amigos do que eles julgam fundamental. Não leio nada; só fico muito tempo puxando o cursor para baixo para dar uma panorâmica em tudo, embora
tudo seja uma impossibilidade inalcançável. Não consigo ler mais que 4 linhas de um post. Se um post tem 5 linhas, não leio. Mas, pela boa educação_ uma cordialidade estúpida e sem sentido, visto a extrema velocidade e extrema ausência de concentração da coisa_, eu vou apertando a tecla
curtir. No segundo dia, já estou em um debate com vários usuários, falando sobre livros, uma montanha de livros. Parecem-me apaixonados pela leitura, ardorosos pretendentes a intelectuais: mas onde acharão tempo para a devoção aos livros, se, pelo que se me afigura, não saem do F? Entro numa roubada de instalar o aplicativo de conversa em meu celular, e daí mesmo quando estou caminhando meus 10 quilômetros diários a parafernália não para de apitar, avisando das mensagens recebidas. Estou dirigindo, e o celular apita. De madrugada, apita. Onde essas boas pessoas acharão lugar em suas compulsões para a leitura? Alguns almejam a carreira literária, sonham com rebeldias explosivas. Há uma garota que até me espanta com a alta qualidade de seus poemas. Mas cadê o recolhimento? A depressão aumenta. Hoje eu passei cabisbaixo, envelhecido, sem energia. Li as páginas que eu escrevo em meu livro, e de repente parecem estúpidas; a estupidez é tão visível nelas que eu esmoreço, vou tomar um suco, ligo a televisão num noticiário. Me espanta meu conformismo. Tudo bem, se eu não consigo, tudo bem, deixo de lado. A negação da chama, por mais que ela seja pequena. Escrever, ora bolas, para quê? Para quem? Aquela velhas perguntas, só que bem mais fodas, bem mais realistas e acachapantes. Há tantos gênios pelo F.; tantas palavras da ordem, tanta ideia fresca e motivacional. Onde eu caibo nessa? Algumas vezes, quando eu consigo ler um texto inteiro de um desses grandes formadores de opinião de 20 mil curtidas e um milhão de amigos, eu penso: para que o mundo precisará mais do que isso? Esse cara, ou essa mulher, com suas estantes de livros ao fundo, com seus posts anteriores falando o que comeram no jantar, esses bem humorados divinatórios, limpos e perfeitos, asseclas da boa aventurança de um novo lugar comum da saúde midiática, já são o auge do esclarecimento, o que se pode exigir mais do que isso? Eles escrevem com agilidade, graça, ferocidade, tudo muito bem medido, sem pompas, como se eu batesse na porta de seus apartamentos vizinhos ao meu e eles me dessem essa incomensurável demonstração de calor biológico me explicando tudo o que eu não sei, tão acessíveis; e fazem vídeos caseiros complementado o ensinamento, em que um lance de sobrancelhas já tem o poder de ficar nas mentes por meses, abrindo espaços de significância. Literatura para quê? Diante deles, escritores como Dostoiévski, por exemplo, é um completo doente. Imagino o quanto Dostoièvski seria execrado se tivesse um F. Doente, imoral, infeliz, perverso, avesso, desconstrutivista, CHATO. Na verdade, Dostoiévski passaria batido, ninguém se importaria com ele. Mas Dostoiévski é um ponto limite, talvez não sirva como exemplo. O que quero dizer é que isso, esse simpaticismo radiante, me deixa numa tristeza só. Fico pensando se, assim como vemos hoje pela série Madmen o quanto o cigarro era incorporado na vida cotidiana de 50 anos atrás, o F futuramente seria visto como um vício extremamente perigoso que a sociedade não percebia. Porque é de uma aberração sem igual ficar todo o dia e noite acessando o F para ver essa caravana de futilidades, essa procissão de vaidades vazias e recalques desbaratados pela fantasia do conteúdo, essa inadvertida construção de uma nova razão para se ter remorso na velhice pela ostentação de não ter feito. Esse fogo fátuo das ideias. O que me assombra mais é o quanto o F prescinde de toda estética, em sua forma quadrangular, sua descansada admissão de que seus usuários são efêmeros, lembra folhetos de propaganda de supermercados e lojas de eletrodomésticos, aliás, não só lembra, mas é um folder de propaganda contínua; é como cultivar a acachapante ilusão de imprimir o espírito entre as cores aberrantes que anunciam as televisões das Casas Bahia, escrever nos interstícios do vermelho e da foto do homem gozado gritando "esse preço só até sexta-feira" a confissão pura e recolhida no fundo da alma. É uma dificuldade procurar as postagens anteriores do usuário, porque o F não foi criado para ser uma reserva progressiva de conteúdos além daquele do dia. Mas não tenho a esperança e o otimismo de acreditar que vá acontecer algum dia essa lucidez libertária de se perceber o quanto o cidadão atual virou uma besta acéfala, regido por fantasias estúpidas de pertencimento a uma comunidade global, ensandecido pelo puxa-saquismo mútuo de que é um gênio e um grande ser humano; mas não acho que vai ficar pior; o F vai acabar, sendo naturalmente substituído por outras roupagens, e o ser humano vai estacionar em sua afasia, o que tal realidade, pode-se dizer, já está acontecendo agora: o ser humano vai se limitar a ser apenas essa vontade não pragmatizada, esse ectoplasma insuflado pela promessa de que pode ser tudo através de uma masturbação cibernética, sem nunca ser nada. Não se pode dizer que se será cada vez mais inumano, porque a lógica é a inércia harmonizar tudo em um mesmo patamar de ausência de valor. Não seria tão terrível se se pudesse transferir tudo para o universo inaugurado pelo F, se tudo fosse da mesma maneira plástica e de sensibilizações amorfas e instantâneas; mas acontece que o mundo do lado de fora, o que antes era tido por mundo real, vai continuar a existir. Inteligências tornadas peculiares pelo corte da amplitude, ternuras excisadas e altruísmo atrofiado até o desaparecimento, vão propiciar um estado de dominação política e social e econômica que, pelo que tudo indica, alcançará níveis de brutalidade inéditos, em uma miríade de formas. E não haverá nada que poderia reverter essa situação, uma vez os seres humanos terem se tornado o homem apascentado e frouxo predito pelo Nietzsche. Isso são pensamentos de um depressivo, que vê a distopia como a realidade corrente, e que escreveu esse texto ruim. Sempre foi um erro e uma ingenuidade imensa acreditar que a dominação viria após revoluções sanguinárias, baderna e anarquismo, que se proibiria ler livros queimando-os todos para que a população não tivesse esclarecimento, que se arrebanharia pessoas em laboratórios e se as produziria em série; a dominação não veio com a censura, mas com a liberdade total; oferecendo-se livros e música de graça para pessoas distraídas a um nível tão extremo que já não conseguem ler livros e ouvir música. Distraídos da distração pela distração, como disse Eliot. E como ele também disse, o fim do mundo não vem com uma explosão, mas com um murmúrio.