quarta-feira, 6 de julho de 2016

Nu para as chamas de Deus



O velho polemista Alexander Cockburn, provocando o ateísmo às vezes beirando o fundamentalismo de seu amigo Chistopher Hitchens, disse: "um contestador hoje em dia seria alguém que argumentasse pela existência do Ser Supremo". As épocas são cíclicas, como observam muitos, e a concentração de uma força que pretende ser dissuasória à tendência ideológica da maioria acaba por se tornar uma estagnação também mantida pela inércia. O ateísmo culto e superior que é vendido das academias se transformou há muito em uma forma solidificada de filtrar a compreensão através de um só óculo de visão, que é a renitente, combativa, militarizada negação quase a nível de rancores pessoais contra Deus. Me faz recordar uma antiga anedota, bastante sem graça, de um clube de poderosos mnemônicos que por si mesmos não perdiam tempo em decorar piadas e recitá-las para a turma, apenas as diziam em seu números correspondentes: bastava um deles olhar para o outro e dizer 437, e logo se caía na gargalhada ao se recordar a piada rotulada pelo número. O ateu carteirizado chega a um nível de certezas indiscutíveis e proficiência da memória dogmática que pouquíssimas vezes mesmo os melhores deles estão em condições para o debate: apenas reafirmam, em maior ou melhor retórica, que a posição de lucidez em que estão é a única digna de um certo primor cerebral, que para eles, por mais que disfarcem conforme exige a ética interna, é o primor dos seres superiores, dos que estão distintos em altíssima elevação da ralé cega e bestialidade dos crentes. Basta a eles citarem os números correspondentes às suas já em franco processo de enferrujamento ideias feitas sobre seus heróis canônicos, Dawkins, Darwin, o Macaco Antropológico, o Cientista Estoico À Procura da Melhora da Vida Terrena. Assim, o que eles deveriam combater em uma dialética brutal contra as diversas formas de realidades deletérias provindas do uso de Deus por aqui, se transforma em uma infantil e sem sentido luta contra um fantasma, tão cômica que sempre escapa a eles o tanto que, subliminarmente, parece que são eles os crentes, eles os abalizadores da existência de um deus-pai cujos filhos mimados se revoltaram contra. Eles se anulam no que teriam de poder de mudança em uma sociedade globalizada cada vez mais sem uma voz sincronizada contra a bandidagem do igrejismo, ao nunca verem que o que se combate aqui são os homens por debaixo de deus, as organizações ultracapitalistas pactualizadas com dirigentes corruptos de estados sem representações críticas sociais, que se beneficiam obscenamente com os lucros cósmicos dos utensílios deísticos vendidos para a prosperidade econômica do homem médio sem educação, os tetzéis aproveitando da extrema ignorância reinante para vender suas indulgências, suas madeiras da cruz. Os ateus, que na verdade é a mais inofensiva classe intelectual desde há muitas décadas, são raquíticos demais para irem contra as tantas igrejas vilipendiadoras, as leis que isentam essas empresas do medo de impostos e assim promulgam suas legitimidades, os cartéis mafiosos de líderes do pastoreio que a mídia televisiva deixa quieto também por medo ou para a manutenção da homeostase de chantagens e crimes recíprocos entre os poderosos donos de jornais e redes de tv, estes mesmos vinculados intimamente à extorsão gigantesca das igrejas. O que os ateus fazem é colocar cartazes nos ônibus vermelhos de Londres convidando idioticamente para um carpe diem anacrônico, já que deus não existe, um retorno às modas existencialistas e aos anos hippies que em escala mais avançada fecham com bebedeiras eternas em bares e desistência de tomar banho, sexo em praça pública e apreciação da beleza que o acaso engendrou e as atribulações cotidianas vazias nos impedem de ver, isso enquanto o mundo passa por uma de suas maiores crises financeiras e morais, e cujo silêncio em torno deixa intactas as novas igrejas que surgirão para comportar os novos estelionatos aos homens desesperados.


E isso se trata apenas dos erros da única coisa que o ateu consegue ver. Os erros maiores são sobre o que eles não veem. O contestador de Cockburn é um homem culto que sabe, com sua parte inconsciente, que a concepção deísta está por detrás de bem mais coisas que estão por aí e compõe a identidade humana que um rápido olhar discriminatório não conseguiria ver. A simples menção a essas nuances já coloca em febre o ateu rosa-cruz de armas em punho, como se estivesse diante a mais uma enunciação da virgem Maria ou das chagas de Cristo. Nada mais triste que a regra da conduta das pessoas sofisticadas e esclarecidas seja a de descartar tudo que se refere a deus como uma bobagem obsoleta. Essa tendência, que não foi criada pelos ateus mas eles a utilizam como raiz comportamental, é a única voltagem carregada de perigo que o ateu possui, a sua única contribuição de peso, ainda que passiva, para a mudança do mundo. Mas acontece que essa mudança já está em curso, dirigindo-se mesmo para sua conclusão peremptória, e não é nada vantajosa. É sobre a não-conformação à essa mudança planificadora que o Cockburn interpôs o seu contestador que cogita o Ser Supremo. O mundo está cada vez mais acabrestado à moral funcional que sobrou da devastação da procura primordial pela transcendência, a moral do dinheiro e do entretenimento eletrônico que regimenta apascentando toda pulsão contrária de desforra ao moderno sistema escravagista. Com a ausência insensibilizada de deus numa sociedade devotada ao embrutecimento das nuances e à falta de tempo, o que sobra são seres atinados apenas às emergências ganglionares, à evasão da atenção para setores de escapismo que as alimentam sobre os planos imediatos de forma tal que seja menor o sofrimento das horas de engarrafamento para se chegar ao escritório ou à fábrica. É fácil ver que os ateus já são os vitoriosos há tempos, não há motivo para que eles se preocupem com o revide do fantasma. Nada mais determinante para a descrença em sinergismos sagrados do que a incapacidade de comportar qualquer intuição do esotérico em gares de metrô, em grandes avenidas de pistas quádruplas atulhadas da disputa dos modelos automobilísticos do ano, em ninhos de edifício com as letras de aço pressurizado por sobre o exército de homens de terno. A uma mente paranoica seria tentador supor que tudo foi maquiavelicamente pensado para retirar deus da jogada numa violenta assepsia programada, como aquelas histórias da conspiração satânica em que no alto dos edifícios de Wall Street estarem escondidos o número da besta do apocalipse. Mas como disse um escritor americano, há muito que seres espirituais superiores como Lúcifer ou os arcanjos não se preocupam mais com seres tão irrisórios como nós. Nesta solidão de desinteresse redencionista, estamos relegados ao desamparo de nós mesmos. Fomos nós mesmos que empobrecemos as estruturas de todo tipo que nos cercam até um limite intransigente de realidade, até um nível de cinismo em que tudo que esteja além dos reflexos da caverna seja ridículo e infantilóide. Nossa forma mais alta de religiosidade é ditada pela consumação do aproveitamento do tempo em prol de satisfações hormonais puras, desde a hora para se respirar um pouco do cafezinho à busca dos filhos na creche para acompanhá-los na comunhão silenciosa noturna do programa de televisão antes do sono intersticial para um outro dia repetitivo até à medula. Em recente artigo da Le Monde Diplomatique se analisa as consequências das pretendidas novas reformas na semana de trabalho francesa diminuída para 30 horas, se seria realmente positivo para indivíduos embrutecidos pelo relógio ter mais tempo livre, se isso não aumentaria a criminalidade e as taxas de suicídio. Viver para quê?

Entre os contestadores cockburnianos está o filósofo esloveno Slavoj Zizék, que em várias partes proveitosas de seus longos livros sobre a crise utópica da modernidade rendida à unidimensionalidade do capitalismo, faz uma apologia embasada da necessidade do grande Outro. Zizék cita fartamente o grande escritor católico Chesterton, em especial seu livro clássico Ortodoxia. Não é um simples artifício retórico em defesa da alienação consoladora ao sagrado como método social de dominação popular.  Zizék vai fundo na análise do nonsense e da estupidez  contra a inerente disposição biológica humana pelo abstrato que são as correntes de ateísmo organizado. Ou Zizék só é lido por jovens nostálgicos dos movimentos revolucionários da memória de seus avós e pais, ou é lido insuficientemente pelas academias, pois nunca se menciona o caráter dele para o debate ateu, sendo um disparate colocá-lo no mesmo nível que Dawkins e Hitchens, em posição contrária. Certa vez me disseram que Zizék não era a pessoa certa para falar sobre a procura por Deus, como se houvessem universidades milenares que detêm o conhecimento secreto do Nada aproveitada apenas para credenciados. Me vejo pensando na questão epistemológica de que tudo que se produz ideologicamente pelo homem, na arte e nas ciências e em qualquer outro campos, é o resultado da procura por Deus. Me confrontei com isso quando lia ontem o maravilhoso e indispensável livro de George Steiner intitulado Tolstói ou Dostoiévski. Abaixo, um excerto do livro de Steiner.

"O nó da questão é, como em qualquer questionamento maduro do enigma da linguagem e do significado, teológico. A desconstrução reconhece plenamente essa verdade quando postula que os marcadores semânticos só poderiam aspirar ao sentido estável, à intencionalidade, se fossem subscritos por alguma origem ou autoridade final, transcendente. Não pode haver, para o desconstrutivismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, tal garantia. Em Presenças Reais (1989) argumentei que uma aposta pascalina na transcendência é o fundamento essencial para a compreensão da linguagem, para a atribuição de significado ao significado. Essa aposta, além do mais, caracteriza implícita ou explicitamente a grande arte e literatura desde Homero e Ésquilo quase até o presente; ela por si só nos permite "fazer sentido" da música. Os clássicos, as obras de literatura dominantes na modernidade, são "religiosos" em sentido específico. Eles vinculam a questão da existência ou não-existência de Deus. Apesar dose exemplos serem bastante raros (Leopardo, Mallarmé), um ateísmo consequente pode produzir imponentes alturas de visão. A alta poesia e arte podem ser construídas construídas a partir da "morte" ou ausência do transcendente. Como pode, e espantosamente tem sido, das diversas ordens de confronto com a possibilidade da "presença real" de Deus. O que me parece condenar a imaginação questionadora, o poder da forma significante, à trivialidade, é o abandono da questão da existência ou não existência de Deus ao absurdo semântico, a algum jogo de linguagem infantil que não é mais relevante ao homem.  

Somente quando terminei Presenças Reais me dei conta de como esse argumento já havia sido inevitavelmente colocado trinta anos atrás. Tolstói ou Dostoiévski procura mostrar que a estatura desses dois romancistas é inseparável do seu engajamento teológico. Se Anna Kariênina é, como Henry James percebeu, algo "tão maior" do que até mesmo Madame Bovary, se Os Irmãos Karamazov excede de maneira tão formidável Balzac e Dickens, a razão é a centralidade para Tolstói e Dostoiévski da questão-Deus. Por sua vez, o que torna legítima a afinidade de Tolstói com Homero e Dostoiévski com Shakespeare é uma intimação compartilhada das realidades, individual e coletiva, física e histórica, além do alcance do empírico. Para ambos os mestres russos, assim como para Pasternak e Solzhenitsyn depois deles, a assunção de D. H. Lawrence de que, para ser um grande artista ou escritor era preciso se ficar "nu para as chamas de Deus" (ou do não-ser de Deus), era auto-evidente. O constante recurso de Tolstói ao mysterium da ressurreição, as figurações de Dostoiévski de um niilismo apocalíptico, são simultaneamente atos incomparáveis de concepção narrativa e dramática e de filosofia religiosa. Esse livro evoca as afinidades profundas entre a realização russa e o cenário teológico em Hawthorne ou Melville."

Texto com comentários aqui.

2 comentários:

  1. Charlles, você viu essa entrevista do Steiner?

    https://www.youtube.com/watch?v=Oear9SEXQKQ

    Gostei demais.

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