quinta-feira, 9 de junho de 2016

The plastic people of the universe



Ano passado eu fiquei estarrecido com um pão de queijo de oito reais, em um aeroporto de Minas Gerais. Estávamos de viagem para a praia, com uma provisão de grana bastante satisfatória, economizada para passarmos bem o passeio, mas tanto eu quanto a Dani nos recusamos a sermos espoliados por esse insulto de preço. Havia uma fila enorme de pessoas para comprar na loja do pão de queijo. Um pão de queijo de tamanho normal, que todas as manhãs eu compro aqui por 70 centavos_ e vendido assim na terra do pão de queijo, por absurdos 8 reais. Gente encasacada, um homem com um olhar sonso de pensamentos com suas ocupações profissionais (julguei ser um advogado), e mulheres de óculos escuros e ares esnobes, diligentemente esperando a vez como se fosse a coisa mais normal do mundo. Comprando uma cesta de pães de queijo onde cada um era 8 reais.

Vejo nos facebooks dos intelectuais produtores de textões a regra sagrada de se fingir que se mora em um país europeu, ou um prosseguimento descansado economicamente dos EUA. Mete-se o pau com sofisticação, fala-se da crise, da violência, da política, mas todos, TODOS, respeitam a regra de jamais falarem sobre as condições personalíssimas da precariedade da qualidade de vida nesse país. Todos simulam cultura, vida mansa, sair na cidade com segurança, um país de preços condizentes com os salários. Quando falam de assassinatos e latrocínios, violência policial e sequestros, é com um ar de assepsia de que tais indelicadezas são coisas que acontecem com os outros, eles estão ali com o violino choroso para executar a trilha sonora do esclarecimento engrandecedor. Suas funções é pescar a mensagem moral da realidade que eles transformam em parábola. Mas a verdade é que todos estão na miséria, uma miséria bem regrada, bem apertada para não estrebuchar o excesso de gordura e fazê-los passar vergonha. O importante é evitar a todo custo o escândalo.

Meu salário é bom. Creio estar numa privilegiada zona B. Mas minha qualidade de vida despencaria se eu vivesse em uma capital. De dois em dois meses passo um fim de semana em Goiânia, e... valha-me Deus, que vida impossível. Se eu morasse ali estaria fodido. Eu sou um homem melindroso, cheio de manias consumistas particulares. Agora mesmo está no forno uma pizza de calabresa com pimentões amarelos e vermelhos. A última vez em que estive em Goiânia, assim num átimo, vi incinerados 180 reais de meu bolso com duas pizzas grandes da Pizza Hut. 180 reais, Jesus! Por um fast-food? Por aquela que é cosmicamente aceita insofismavelmente como a comida plástica mais barata do mundo. Da vez passada, comemos no Burger King, cada pedido 22 reais. 22 reais se compra um quilo do melhor filé mignon aqui na minha cidade. Minha mãe quando vem para cá pede para que eu encomende peças de carnes nobres para ela. Uma vez ela tirou uma foto de uma peça de picanha no walmart e me mandou: etiqueta com o preço de 190 reais.

Como é que se quer que um povo assim respire, seja pretenso à independência de pensar criticamente sobre si mesmo? Um povo que paga, como um colega meu de trabalho, 2.800 reais de imposto anual do carro, o mesmo carro que, aliás, no Chile custa 32 mil reais, mas que ele comprou na concessionária por 60 mil? E não há uma estrada que não seja de ruim a péssima em quase todo e estado de Goiás, tirando as pistas duplas construídas pelo atual governo e que estão para serem privatizadas?

Como se quer que um povo assim se respeite e seja respeitado? Os caras e as moças do face deveriam parar de fingir infantilmente que vivem em Amsterdã, que são adidos culturais ou embaixadores itinerantes cumprindo a missão benevolente de escreverem com classe sobre uma miséria alheia, que não os tocam. Parar de fingir que no Brasil neva e tem trens modernos com ar condicionado que transitam por campos verdejantes onde pastam singelas vaquinhas de leite. Ter uma sky, uma internet popular de 1 mega, ouvir seja qual for o herdeiro atual de Chet Baker e ler os romances descolados da Jennifer Egan, não nos faz imunes de nosso carma espiritual de sermos um povo explorado pela própria burrice. (Aliás, esses grandes intelectuais do face, na maioria, vivem na tristíssima cidade de São Paulo, na horrível e esfumaçada e esteticamente deplorável São Paulo, que recentemente uma revista reportou a notícia de que o custo de vida nela é bem mais caro que o de Paris.)

Adendo 1: interessante essa "politização" no cenário nacional. Independente de quem esteja por detrás da opinião expressa, se um artista plástico, um crítico de cinema, um cozinheiro de restaurante famoso, uma bailarina, todos em suas produções corriqueiras nas redes sociais tem de encorporarem uma consciência política, consciência essa revertida no limite de seus esforços em conselhos clichês e indignações "contra a corrupção" que não são mais que álibis para exercerem suas adesões ao humor ignóbil das piadinhas da internet e das palavras de ordem do senso comum. Tudo o que falam não passa do mais crasso lugar comum. Assim, vejo alguém que se intitula cineasta e crítico literário, apesar de até então eu nunca ter ouvido falar de um filme ou lido um texto sobre cinema dele, mas que é altamente popular no facebook, com posts que chegam a milhares de "curtidas". Recentemente, como é de regra entre esses intelectuais, ele se lançou numa briga pessoal contra um "blogueiro progressista", apenas pelo que ele achou ser um título de mau gosto empregado em um texto desse blogueiro; daí então começaram as ofensas, com centenas de seguidores do cineasta repetindo e aumentando os insultos contra esse blogueiro, pessoa aliás que muitos dos comentaristas admitiram nunca terem ouvido falar, mas que não os impediu de decretar um ódio genuíno contra ele. E depois, como também é de praxe previsível nesse tipo de comportamento cibernético de rebanho, o cineasta, cobrado por sua percepção de que a coisa necessitava de uma maior legitimidade, passa a acusar o blogueiro de ter usado um de seus textos sem pagar os direitos autorais, e aí a coisa vai. Como se copiar textos pela internet tivesse sido inventado naquele momento e como se um post publicado no faceboom fosse causa milionária de querela de tribunais. Outro facebookiniano, um autor de um calhamaço de crítica literária indigesta, nos moldes do mercado nacional de recentes títulos "polêmicos" contestadores de verdades instituídas da história e da ciência, respondeu à crítica que fez um dos comentaristas de sua página no face contra seu livro, que iria "comer o cu da sua mãe", crítica aliás, a feita pelo desafeto, bastante abalizada em diversas provas mostradas no momento que o autor do calhamaço não tem as mínimas condições para ser um escritor, devido seu péssimo manejo da gramática e sua capenga capacidade de concatenar as ideias e a estética no texto. Uma briga, para maior sublinhar a mediocridade do que rola nos "debates" de qualquer vertente neste país, instigada em nome das paixões do culto a esse guru como em todas as coisas nacionais histriônico ao extremo, chamado Olavo de Carvalho. Há vários outros intelectuais classe média facebookinianos, que a maré da efemeridade à enésima potência da internet está nesse exato momento relegando ao completo esquecimento, todos politizados e todos descolados na repetição das normas plastificadas do que se deve falar sobre a situação do país, e nenhum, repito, sequer mencionando que moram em apartamentos de quarto e sala, tomam sua cervejinha regrada duas vezes por semana no happy hour barato em que eles mesmos talvez tenha comprado um quadro em preto e branco de Deleuze ou seja lá quem, para dar-lhes o glamour masturbatório que eles cultivam em exatas medidas de inanição de auto-crítica em seus avatares cibernéticos; pegam ônibus ou atravessam o caos da miséria urbana brasileira dentro de seus carros populares chiques, financiados ou razão de empréstimos consignados em que eles alegam ter pago pelo veículo seus absurdos 35 mil reais, mas que na verdade é o dobro disso somadas todas as parcelas dos longos 5 anos de rabo preso com os juros bancários, e não, jamais deve-se mencionar isso, essa indigência nacional, deve-se sempre se esconder por detrás dessa valiosa capa metafísica que é a coisa para a qual eles são capazes de darem as vidas, essa obstinada maquiagem de que são seres de primeiro mundo exilados com sofisticação em um país falido, essa punhetagem de zé-ninguéns.

Adendo 2: na minha cidade, um supermercado resolveu promover uma revolução duvidosa. Aos olhos de todos, passou a vender sob a mais descarada sonegação. Não sei como conseguem, não sei o que isso vai dar, mas o pequeno espaço do prédio vive diariamente cheio de carrinhos lotados empurrados por clientes. Desde dois meses que nós aqui de casa deixamos o supermercado onde temos conta e passamos a fazer a compra do mês lá. Eles só aceitam dinheiro à vista, e não emitem nota fiscal. Dão uma folha impressa com todas as informações da compra. Nossa despesa de supermercado caiu em 40%. Há muito o que pensar sobre isso.

4 comentários:

  1. Eu moro em Guarulhos e levo uma hora e meia (se correr tudo bem) pra chegar na Av. Paulista, onde trabalho. Me pergunto todo dia como aguentei tantos anos essa rotina ridícula, pra dizer o minimo. Esse modo de vida está esgotado pra mim, o que vem a seguir eu não sei...

    É verdade que não sou um grade conhecedor de cidades, raramente viajo, contudo tenho a nítida impressão que SP é uma especie de torturadora implacável, tudo aqui conspira pra te foder. A cidade grande te quer louco, te quer triste todo o tempo.

    Esse post me lembrou de Radiohead... Fake Plastic Trees

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    1. O nome do post é o nome de uma band cult tcheca, da qual tive conhecimento através do livro do Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, e só pude ouvir anos depois, com o advento do download.

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  2. Lendo esse teu texto, me veio a mente determinados produtos que já existem, mas que por algum motivo, eles resolvem renomeá-los, geralmente com nomes em inglês, e a mudança de nome não fica gratuita, já que o preço vai pro espaço.

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  3. Até me lembrei desse episódio do "portas dos fundos", https://www.youtube.com/watch?v=8aDRbKSyO-M

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