segunda-feira, 30 de maio de 2016

Último ato de impureza




                                                             I've got the spirit, but lose the feeling
                                                                                                           Joy Division

Vocês vão dizer que eu deveria ter usado de maior consideração diante o convite de Lália Mendonça para que eu fizesse parte da reunião para a sua morte. Claro que jamais seria a mesma festa involuntária que a Lália conseguia transformar desde as conversas mais triviais até os encontros mais obscuros de nossa classe de profissionais, quando a sua risada escrachada e sua falta total de boas maneiras colocava tudo a baixo, até o repúdio que eu sentia pelo que sempre achei ser a propensão de Lália  para a pobreza. Mas, alguma vez, olha a ironia da coisa, das vezes em que eu era tocado pelo absurdo de sua falta de respeito aos padrões de fé cotidianos, eu devo ter soltado a frase: “Ah, Lália, tu transformarias até um funeral em uma festa.” Ao que ela, tão encalacrada no presente onde reina o terrível engano da impunidade quanto eu, deve ter emitido outra de suas gargalhadas de matrona colombiana, e concluído com uma de suas frases habituais: “Não estamos aqui somente para viver, Epaminondas?” E agora o cartão branco no formato de uma carta de espadachim em miniatura, com as letras ornadas de dourado, paira em minhas mãos, com aquela rispidez equivocadamente súbita que mal esconde a premeditação do destino em cair do restante de contas para se pagar, propagandas de cosméticos e de canais de TV a cabo, algum ou outro pedido manuscrito ou escrito numa tipografia caseira de mimeógrafo para socorro de um doente, cai na palma da minha mão e não tem como eu não ler com uma espécie de pesar, um pesar seco, vigoroso, que pretenderia, se fôssemos super-homens ou semi-deuses com o domínio do passado, voltar ao tempo até a data em que tudo começou a ruir na vida da Lália, e resgatá-la, resgatá-la de sua pobreza, de sua ingerência aos mais prosaicos artifícios da vida, do câncer que lhe comia e que destinava a última mordida para a sexta-feira de seu convite em que ela tornaria a se apresentar ao mundo, para que então aquele convite não contivesse o absurdo com que uma Lália demente escrevera em palavras cheias da mais vazia alegria.

Por isso digo a vocês que aquilo acabou com o meu dia, o que por si mesmo já era um gesto de consideração ao sofrimento de Lália. Nesses últimos meses _ anos, sejamos precisos_ as coisas não andaram bem para nenhum de nós, intercomunicadores com o Além. Tanto que aquilo que os outros chamam de padrão de vida decente deu uma decaída severa para mim, que tive que me mudar de seis residências ao longo de dois anos, obedecendo a uma linha descídua de quitinetes com vistas para a praça da matriz, um apartamento de dois quartos num bloco em San Diego, e, por final, esse quarto-sala nos fundos de uma pensão familiar remodelada para ser um refúgio provisório para quem não quer dar as caras por algum tempo. O locatário, um homem de uns sessenta anos, com um dos olhos mortos (não me recordo se o direito ou o esquerdo), e uma voz sumida de alguém que teve das suas com drogas pesadas ou foi exposto à violência na infância (os espíritos se negam a voltar aos bons tempos de celebração da fofoca), nem sequer me olhou por mais que o segundo suficiente para saber a quem cobrar se atrasar o aluguel, com sua indiferença alheia que indicava ser um profissional a quem se deveria valorizar aquela espécie própria de resguardo sigiloso. Na desgraça somos todos cordiais, pensei, enquanto arrumava minha mesa redonda do lado mais próximo à janela (para caso os espíritos continuassem renitentes e tivesse que recorrer a uma insinuação teatral com as luzes de fundo), minha penteadeira remodelada, e minhas caixas, de forma a aproveitar da melhor maneira o espaço. Todos iguais, a ponto de não me preocupar mais com os irritantes detalhes das minhas roupas ditas extravagantes. O locatário, nem o rapaz do caminhão de mudanças, fizeram como se importassem com minha calça de sarja com as cores da aurora boreal, e minha camisa de mangas longas sem gola e aberta até quase a meio peito, e nem tão pouco meus cabelos enrolados sem muito empenho numa fita de cetim azul (há quanto tempo não dedico a eles um banho de química revigorante), mas tem sempre aquela eletricidade fagulhar, aquela catalogação rápida de resolver a questão em que lhes aparece pela cabeça “uma bicha”, para encerrar o assunto. Mas o velho locatário em sua perícia de não transparecer que vê nem com o olho bom, não demonstrou qualquer recalque diante meu estranhismo. Talvez seja ingenuidade da minha parte achar que alguém possa ser estranho hoje em dia, e o velho é que tem a verdadeira presença de não se espantar com nada.


No primeiro dia, antes que eu selecionasse pela pequena sacada algum dos rapazes que tivesse a aparência menos conspícua para que saísse distribuindo meu cartão de apresentação, já uma mulher aparece-me batendo à porta. Na verdade o senhor cego que bateu à porta por ela, a título de apresentação, dizendo-me sem lançar a mínima olhada do olho que presta (acho que é o direito) para ver a personificação que eu dera ao ambiente, de que uma tal senhora Genôra ou Gênova, não me atentei bem, pedia para ter uma reunião comigo. Ele disse assim mesmo, com essa pompa deslocada que me dava certa importância de pessoa famosa, a quem precisava de intermediadores para consultar a agenda. Eu ri; olhei-o julgando-o o cara mais simpático do Trópico de Capricórnio para cá e disse, mas claro, senhor, com todo prazer, que a mande entrar. E o locatário abriu a guarda afastando-se para o lado e me apresentando com um sinal a uma velhinha que só poder-se-ia usar esse diminutivo em relação a ela pela caridade natural que alguns bons espíritos têm com as senhoras de mais de setenta anos, porque se tratava de uma mulher que preenchia de fio a pavio o ângulo de luz que vinha da lâmpada do corredor, como não a tinha visto ainda, aparecendo sobre os ombros do locatário, era que eram elas, uma senhora com vestido de chita branca com detalhes funcionalmente floridos destes que as velhas usam há milênios e cuja moda fora reforçada por determinações petencostais, um chalé contra o frio enrodilhando o pescoço, uma mulher, em suma, de bem um metro e oitenta de altura, encurvada para frente de modo a dar apenas um traço vestigial ao pescoço, e os mesmos olhos atônitos que os velhos, principalmente as velhas, possuem, um atonicismo disfarçado, coberto pelo espanto da experiência acumulada com seu homem e os filhos que esses homens lhes engendraram e os netos que indireta mas espoliativamente os filhos de seu homem a fizeram ter. Um horror educado e perfeitamente absorvido pelos atos sociais, a ponto de ser carregado de mérito. Fiz com que ela entrasse, o que ela fez com uma energia e falta de frescura exemplares, sentando-se na cadeira de espaldar à moda vitoriana que tenho para uso dos clientes, e que havia limpado essa tarde por puro costume sanitário e sem qualquer premeditação. Chamava-se Eugânida, e não Gênova ou Geneva, como soara a voz narcoléptica do locatário, e queria por que queria que eu aceitasse uma nota de cinco já de saída, sem explicar por quê. Aceitei-a, não sem alertar que o fazia para agradecer a confiança que ela demonstrava em minha capacidade de ajudá-la. Mas enfim ela pareceu não ter nada dessa confiança, porque precisaria retirá-la dela à força ao longo de outras consultas, o que indicava com mais primor o quanto os ventos da sorte haviam mudado para mim. Li sua mão, disse-lhe que sua áurea estava púrpura com algumas resplandecências rosa em torno, o que indicava estabilidade espiritual e força intelectual. Havia tanto que não me pediam para ler a áurea, área da percepção extra-sensorial que até se encontra obsoleta e sem uso, que estive para recitar a velha cartilha empregada nessas horas e quase disse que o púrpura indicava que ela estava por encontrar um grande amor, uma paixão tórrida e fervorosa. Acho que na verdade cheguei a dizer, tamanha a felicidade que o retorno do dinheiro havia me dado, ao que a senhora soltara um risinho tímido de filme da terceira idade e me olhava como uma garotinha do alto de sua postura de jogadora de basquete enfunada na cadeira. Era uma boa senhora, cordata, educada, mas quase explodindo de vontade de contar alguma coisa, alguma coisa que não era um desabafo, porque seu sorriso faceiro demonstrava isso, mas algo alegre, uma descoberta importante que dava novas cores ao seu dia. Era mais uma fofoca que queria me contar, essa senhora incrivelmente incongruente por ser tão feliz mesmo na solidão sem amigos e parentes que precisa recorrer a um médium profissional para ser ouvida. Deixei-a à vontade para que viesse disposta a jorrar o seu segredo quando quisesse. 

Nesse meio tempo, consultava a carta do arlequim em miniatura sempre que me dava por desocupado. Tomava banhos intensos no banheiro do quarto, que graças aos céus é o benefício do qual ainda estou em condições de não dispensar, evitando as filas dos inquilinos de olhos inchados e gargantas congestionadas nos banheiros do corredor. Esfregava minha pele com a carcaça de uma esponja que trazia na mala, herança de um cliente que me convenceu que o instrumento dado pela natureza era o único realmente capaz de assepciar a pele, querendo com isso como que me exorcizar desses dois anos de penúria e incertezas. Esfregava-me com uma determinação furiosa, falando baixinho que não queria isso mais para mim, que o mundo espiritual e os promotores do lado de lá me deviam uma vida com o mínimo de conforto e estabilidade, tantos trabalhos havia realizado para eles. Deixava a ducha escorrer sem culpa por sobre meu corpo, e ficava olhando num desamparo a sujeira sendo deglutida pelo ralo. E assim, como se ainda que não me retornassem o diálogo mas que não tinham como deixarem de ouvir aquelas minhas súplicas, os espíritos foram me trazendo mais clientes, de todo tipo, num ritmo e quantidade surpreendentes. Ouvia o bater na porta, atravessava do sofá deixando a carta por sobre o console da penteadeira, e abria a sala para alguma moça que queria saber se o homem que amava era o homem certo, ou outra que queria dos espíritos o encantamento para fazer que se apaixonasse por ela o homem já comprometido, ou que lhe voltasse o amor desaparecido, e não eram apenas clientes do sexo feminino ou os viados eventuais que vinham tanto pela precisão dos conselhos do outro mundo quanto só para confirmar o que haviam lhes dito que eu era aquele tipo de viado reservado e estritamente profissional, mas vinham machos com um pouquinho de lapsos educacionais suficientes para considerarem hipóteses menos materialistas, perguntando se iriam ficar ricos, se havia como algum espírito soprar em seus ouvidos (sem que passasse pelos meus) o número que iria dar no sorteio da loteria de sábado.

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Nota: O tema do homossexualismo me fascina. O único conto que enviei para um concurso uma vez tratava sobre isso (este conto, em sua forma completa). Era a semana cultural da faculdade de história na pequena cidade. Fui instigado a entregar uma copia do conto por uma namorada, no departamento da faculdade. No dia da revelação do ganhador, em que se daria os prêmios de dança, teatro, bolo de cenoura mais gostoso (era uma quermesse, não o premio nobel, como se vê), havia apresentações e arquibancadas cheias. Eu estava convicto que eu iria ganhar o prêmio e desde duas semanas me arrependia profundamente de ter cedido à pressão da namorada e daquela vaidadezinha pueril. Tentei reaver o conto na administração, mas a funcionária sorumbática se recusou primeiro por preguiça em procurar preencher papéis de desistência e ver onde a tralha estava, segundo porque percebeu que a coisa parecia importante para mim e queria exercer seu masoquismo de estar em uma posição de dominância. Faltando alguns minutos para a revelação, só esperando que o festival de catira terminasse, eu não aguentava diante a vergonha que estava prestes a passar, e disse à namorada: "Vou dar uma volta por aí e daqui meia hora volto. Desce lá e recebe o prêmio por mim."; "Você não sai daqui nem que a vaca tussa. O mérito é seu; você vai lá, vai receber as palmas, e volta para cá. Simples." Não havia como sair do meio da multidão. Quando o locutor falou "e agora, vamos ao vencedor do prêmio de melhor conto do ano", eu me recolhi entre os ombros e suei frio. Mas a ganhadora foi uma mulher de uns 50 anos, que fazia letras, tinha escrito uma espécie de crônica sobre o quanto a família abençoada por deus prosperava em todos os sentidos, e subiu a paliçada com um cara de sono tétrico, pegou o trofeuzinho sem rir e foi comer uma maçã do amor junto aos filhos. Nunca achei a cópia do conto.

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