sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Lendo As rãs

A foto saiu desfocada pois tive que apertar o clique do celular com o nariz.


Espanto-me diante a modéstia e despretensão de Mo Yan. Tento correlacioná-lo a algum outro escritor que conheço, mas não me lembro de já ter-me deparado com algo do tipo. Mo Yan é um narrador puro; um contador de histórias cujo enorme prazer que sente ao escrever transparece visivelmente em seu texto. E é isso: ele escreve apenas pelo prazer, o que pode soar contraditório diante aquela máxima de que o prazer deve ser o único mote de um escritor. Mas a verdade é que sabemos que não é bem assim, geralmente o mote mais motivacional de escritores é a vaidade. E Mo Yan quase não tem vaidade (coisa impossível para um artista de qualquer expressão); ou aparenta estar descansadamente independente a elogios e a reconhecimentos desde que tenha o papel e a caneta em sua escrivaninha. Difícil não associar tal humildade com o condicionamento imposto pelo regime maoista. Em Mudança, primeiro livreto dele editado aqui, chega a ser desconcertante a acriticidade que seu alter-ego narrador demonstra, uma simetria tão pacificamente espelhada nas regras do Estado que é uma das demonstrações na literatura recente da perfeição apolítica. Li as 50 primeiras páginas de As rãs, que me chegou hoje, impressionado mais uma vez com o despojamento e a linearidade infantil de Mo Yan. O tema do romance é um achado, o que muito indica ser retirado da biografia do autor; um desses temas tão bons que é praticamente certo o sucesso da empreitada. E Mo Yan começa a narrativa com uma carta, e segue convertendo toda a maravilhosa história a simples exercícios literários inspirados por um professor de literatura. Comparam-no com Garcia Marquez, pelo realismo fantástico e pela semelhança entre os personagens simplórios de povoados esquecidos em dois cantos do mundo (um na Colômbia, outro na China), mas enquanto Gabo sempre inicia com majestade e exuberância, Mo Yan apenas escreve, sem frases marcantes, sem imagens sinfônicas. E isso é incrível! Funciona magistralmente! Prende o leitor. Mo Yan recorre aqui e em Mudança ao narrador infantil, o que encaixa a seu artifício de ingenuidade. Lembra Abbas Kiarustami; lembra, estranhamente, Tarkósvki. Sua prosa tem uma cristalinidade genuína, uma limpidez desarmante que parece ser toda criada por Mo Yan. Não se trata do que a literatura japonesa, por exemplo, consegue produzir com essas características, pois esta tem, ao fundo, um forte acento filosófico e niilista. Já Mo Yan não, ele prescinde de peso. O outro chinês que já li, aliás também um prêmio Nobel, no grande romance A montanha da alma, de Gao Xingjian, a narrativa é também imensamente simples, recorrendo à pintura, aproximando-se da poesia paisagística. Já Mo Yan afasta-se também do artifício da poesia.

Uma última nota: foi difícil conseguir comprar As rãs. Fui a três livrarias na capital, e nas três tive que fazer malabarismo para que os funcionários entendessem o título do livro. Aí tem As rãs? Uma das meninas, que trabalha na Fnac, chegou a tripudiar: Mas vocês me chegam com cada nome complicado de livros. Daí eu respondi: sabe perereca, aquele bichinho branco que parece um sapo e pula na gente no banheiro? Pois é o outro bichinho, o maior, a rã. Rã. Daí coloque ela no plural, e pimba: as rãs. Outro funcionário pensou que eu estivesse falando o nome de um alemão, Härs Hansen. E a confusão era contagiante, eu percebia que meus músculos responsáveis pela fonética não foram treinados suficiente para lidar com um trava-línguas onde se encontravam as nasalações mais perigosas da língua portuguesa, o s, o rr, e o a átono. Isso tudo para não ter o romance em nenhum lugar. Comprei-o pela Livraria Cultura, já que o livro físico na Amazon havia se esgotado e só tinha o para o famigerado kindle.

6 comentários:

  1. Não consigo apreciar esse narrador puro. A não ser que estejamos falando de xamãs contadores de estórias ou dos mitos, e.g. Enuma Elish, Gênesis, Gilgamesh, mitos tupinambás, etc.

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Eu prefiro os mais complicados, também. Mas Mo Yan tem sido fonte de muito prazer. Passei três horas de espera hoje com As rãs e ouvindo o Metheny & Mehldau.

    ResponderExcluir
  4. achei bem interessante o recurso do narrador ingênuo que acaba encantando um professor de literatura - no caso, o destinatário das cartas. Em "mudança", há mais malandragem metalinguística. nos dois livros, porém, o poder de sedução da prosa é mesmerizante. o velho prazer de ser transportado para outro lugar e outro tempo é cultivado com bastante competência aqui.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. E as tantas cenas deliciosas, algumas lembrando desenho animado. A das crianças comendo carvão então, para mim é um clássico: a menina com periodontite com a boca negra e vermelha de sangue, e a professora provando o carvão porque elas dizem entusiasmadas que tem gosto de castanha. E, reitero mais uma vez, tudo descrito com total despojamento. Um ótimo livro!

      Excluir
    2. A tia obstetra atravessando à toda as pontes em sua bicicletinha, para atender os partos de emergência, me lembra sempre os desenhos da hanna- barbera da primeira metade do século passado. Ouço até a trilha de uma big-band de jazz por detrás.

      Excluir