domingo, 6 de setembro de 2015

Seis meses em 1945



É um desalento ler o excepcional livro Seis meses em 1945, de Michael Dobbs, nessa época de ascensão de Trump, grandes levas de refugiados vagando sem rumo pelo mundo, e a política de alienação cada vez mais onipresente da vida abduzida para a realidade cibernética. A sensação opressiva que se tem é que não se pode escapar da História; que Ela tem um fatal modo redundante de engolfar nosso destino de maneira que sempre oferece as mesmas etapas evidentes que nos conduz passo a passo para a ruína. É triste ter interesse por livros de história hoje em dia, porque todo o nosso futuro está ali exposto sem o menor mistério, somente um pouco de assombro e um desconforto perene que aparece quando notamos os atos marciais de repetição sendo executados. Em determinado momento da leitura, liguei para um amigo que ocupa o cargo de historiador da casa de cultura de um outro estado da federação e lhe disse, a título de desabafo: "Mas a humanidade só foi governada por estúpidos!" 

Não precisa ler Dobbs para saber disso, mas a intimidade que seu livro nos dá com a visão cotidiana dos fatos, recolhida dos diários e cartas dos participantes do evento, ressalta essa brutal verdade: o ser humano pode ser conceituado sociologicamente como uma espécie que se apraz em ser governada por ignorantes homicidas, ególatras gananciosos com pouca inteligência, e loucos inconsequentes; e abaliza isso tudo com uma enorme disposição à veneração desses zeros à esquerda. Hitler desenhou de próprio punho um capitólio de 300 toneladas que pretendia construir na nova arquitetura grotesca da Alemanha, que iria abrigar plateias de 300 mil pessoas cuja condensação das respirações conjuntas faria chover no interior do prédio, uma obra impraticável do ponto de vista físico mas que detinha a metáfora perfeita da falência inevitável do terceiro Reich. Quando o famélico Exército Vermelho toma a Alemanha, os soldados russos que mal tinham o que vestir e que viviam à míngua, dormindo no chão e comendo as sobras dos lixos, ao verem que até o alemão menos provido economicamente tinha casa com depósito farto em mantimentos e vivia em cidadelas com excelentes infra-estruturas, foram tomados pelo choque e se perguntaram: "Mas por que a Alemanha provocou essa guerra?" Quando o ministro de relações exteriores de Stálin, Viatcheslav Molotov, aporta nos Estados Unidos, para a conferência de São Francisco em 1945, e vê que a classe trabalhadora daquele país tinha casa com bastante espaço e jardim de frente em seus bairros planificados, e cada qual com um carro na garagem, e recebia entretenimento diversificado para ocupar as largas horas de descanso após o trabalho, ele, em tom de espanto, disse às pessoas da sua comitiva que os Estados Unidos eram "o país mais adequado para o socialismo. O comunismo vai chegar lá mais cedo do que em outros países". A Alemanha ficou devastada em 1945, cidades totalmente destruídas, com procissões de mulheres e crianças mendigas andando pelas ruas, a ausência notável de homens jovens se explicando por sua redução em 1/3 devido às colossais perdas de guerra; a União Soviética perdeu 17% de sua população, um montante de 25 milhões de pessoas mortas, e suas iniciativas anteriores de ser um gigante econômico foram definitivamente caladas, lançando o país em uma miséria catastrófica, com o valor real dos salários tendo sido reduzido em 60%. Ou seja, o caminho inercial que poderia alcançar um equilíbrio de forças benéfico a todos não existe na História; sempre vai haver um líder estúpido e um comportamento de rebanho que lhe dará poder que transformará tudo em genocídio étnico, modificações radicais das fronteiras nos mapas, deportações em massa, instabilidade política e miséria econômica. 

Esse livro de Dobbs trata dos líderes do período: Stálin, o marechal do proletariado, a contradição estapafúrdia do aclamado libertador dos povos que se espelhava nos dois mais sanguinários csares russos, e o maior assassino de todos os tempos; Churchill, o racista radical e machista inarredável, um boneco velho cujo poder era apenas uma presença alegórica de exibição erudita, cuja única ambição era tentar manter o respeito ilusório do que restara do extinto império britânico; Roosevelt, "o homem mais frio que já existiu", nas palavras de um de seus conterrâneos políticos, que astutamente fez vista grossa para as milhares de mortes e deportações que resultariam dos acordo de Yalta, e era um maquiador maquiavélico da opinião pública que alimentou a hipócrita imagem da benevolência humanitária dos Estados Unidos ao longo do final do século XX; Truman, o fazendeiro e pai de família de perfeita plasticidade fotográfica, que era o homem sem expressão ideal para levar os EUA à relativização moral dos massacres da era nuclear.

Seis meses em 1945 é indispensável e um livro que se torce para se chegar em casa para voltar à leitura. Nessa inevitabilidade dos arremedos circulares da História, ao menos é um alento que os escritores de história estejam antenados a tornar seus livros tão permeáveis ao grande público quanto thrillers de suspense.

4 comentários:

  1. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/09/1680327-obra-de-ficcao-cria-liminar-e-vira-alvo-de-investigacao-da-pf.shtml

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    1. A literatura finalmente ganha as primeiras páginas, para provar que o Brasil institucionalizado não entende literatura. Isso cai naquela pesquisa sobre a incapacidade do brasileiro padrão em compreender um texto básico. Se fosse o Lísias, aproveitava para na sequência da série tornar ainda mais indistinguível a ficção da realidade, já que no caminho contrário já o fizeram.

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    2. Polícia Federal, sempre atenta e eficiente.

      Mas leiam isso, por favor:

      https://medium.com/@eltonmesquita/outro-dia-eu-visitei-a-casa-do-greg%C3%B3rio-duvivier-75544e7e08a

      A perereca de hoje nem se compara com os campestres Sapos de Ontem, muito menos o tradutor (de videogames) é comparável ao sensacional poeta Bruno Tolentino, mas essa investida contra o "comediante" e a claque é tao ferina e engraçada quanto àquela. É pau puro!

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  2. conhece, charlles? http://www.blogdacompanhia.com.br/2015/09/leia-um-trecho-de-assim-comeca-o-mal-novo-livro-de-javier-marias/

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