quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Primeiro deus



Demorei além do prazo para aprender a me firmar em minhas duas pernas. Enquanto os outros meninos e meninas da minha idade já iniciavam suas demonstrações de virtuoses admiráveis do bipidismo, causando o deslumbramento bobo em seus pais pela que para eles era a simples coleção de passinhos trôpegos pelo parque, eu me mantinha com ávida fidelidade à minha condição contemplativa de ficar apoiado unicamente em minhas nádegas. Em um mundo tão cheio de mesquinhas competições como esse da maternidade, não era para menos que minha mãe ficasse profundamente incomodada com minha descansada abstinência. Seus orgulhos naturais derivados de seu estado materno até então haviam se restringido aos pequenos alcances em particular que seu pequeno Halperin lhe dava em casa: o primeiro dentinho despontado faceiro e torto pela gengiva, as primeiras palavras guturais que simulavam o termo “mamãe”, os sinais inteligentes que mostravam as primeiras inteirações de seu bebê com o mundo; coisas enfim para as quais ela não se via em franca competição aberta com ninguém, podendo dispor de sua felicidade tranquilamente sem colocar essas conquistas em um cronômetro temporário conjunto. Mas agora, com as quatro paredes da casa substituídas pelo horizonte sem limites em que levava seu Halperin para apresenta-lo ao Grande Baal da cidade, a inapetência de Halperin para fazer-se honrado diante os olhos de todos a deixava envergonhada. Ela dizia: “Vamos, Hal, se levanta nessas perninhas”, e Hal, como um buda precoce satisfeito em seu confortável enchimento de dobrinhas gordurosas corporais, apenas a olhava com uma suntuosa indiferença, plenamente convicto de seu direito em permanecer imóvel. “Vamos, Hal, vem até aqui andando”, ela dizia, colocando seu pequeno Hal em pé agarrado com um crescente pavor a um banco, e se afastando um metro com as mãos espichadas, delimitando assim o percurso em que Halperin deveria atravessar sustentando-se em suas perninhas para que ela tivesse seu aliviador orgulho diante o círculo lupino de mães no parque. Mas Halperin bambeava nas pernocas gorduchas, segurava enfiando as unhinhas dos dedos no cimento áspero do banco, e escancarava a boca em um berreiro desesperado, tomado pelo terror de ter sido retirado de seu estado harmônico com a inexorável força da gravidade e posto violentamente na obrigação de tentar vencê-la por tentativas inócuas de reação. Halperin nunca teve dons cerebrais fora do normal, nenhum de seus futuros mestres percebeu nele nada de muito especial em termos de propensão a um entendimento científico glorificável, mas aos dois anos já sabia o suficiente sobre a mais intransigente das leis físicas para se render com uma complacência bovina sacerdotal à gravidade, seu único e indiferente deus. Halperin pregava sua bundinha rechonchuda e as coxinhas de suas pernas cobertas de curvas e reentrâncias no chão, seja onde estivesse, e ficava em uma paz tão narcótica e sedentária inócua à mínima culpa, que não era para menos que na cabeça celerada das outras mães e pais passasse a suspeita de que ele tivesse algum tipo de aleijamento corporal. E isso, enquanto não causava nada em Halperin além de uma sensação agradável de permanência, para sua mãe era um inferno. Enquanto não andar era um atestado de ter sido aceito pela ordem da natureza, uma ordem que Halperin havia conquistado sem trauma algum apenas por sua humilde subserviência em reconhecer o Imutável e para sempre Imutável, e que Halperin mais tarde saberia que ser abrigado por tal ordem era a tarefa terrivelmente sofredora a que todos os esforços humanos se destinavam, para minha mãe era a fonte de todas as suas vergonhas. Ela me tomava no colo, me retirando de minha posição náufraga em que me colocara em pé no banco, e simulava balançar-me nos braços para acalentar meu choro, mas na verdade nessas ocasiões ficava tão enfurecida que não falava comigo até que chegássemos em casa.
              Olhando agora eu dou razão que ela ficasse tão possessa comigo, e que tomasse minha decisão em não me aprimorar para entrar no mundo dos passantes como uma rebelião deliberada contra os poderes de sua maternidade. Uma foto em que nós dois aparecemos, ela em pé com seu vestido manchado de nódoas de ovo, e eu sentado em um dos parapeitos de divisão dos blocos de prédios, é uma prova da árdua conflagração que acontecia entre nós; ela simulando um sorriso para o fotógrafo indeterminado, seus dentes infantis demonstrando a quão pouca distância estava dos anos em que não existia Halperin algum para ela cuidar, e o olhar que o Halperin lançava para a lente com uma determinação um tanto vingativa em dar irrecusável certificação de sua materialidade. Eu tento inutilmente recordar dessa ocasião, enganado pelo pensamento de que tamanho ódio em olhos semi-cerrados, convictos em não cederem à sua capitulação total com a gravidade, deveria ter cinzelado um fragmento de lembrança mesmo em uma cabecinha de dois anos. Dessa foto propriamente não me lembro_ talvez certa tendência a escapismos atmosféricos a que me remetem céus da tarde cobertos de nuvem tal qual o que aparece nela, uma certa nostalgia do aquecido deleite de ser um prosseguimento carregável que se atinha obsessivamente aos braços dela_, mas recordo de que meu tempo de reverência à imobilidade durou bem menos do que eu planejara. Tendo testado todos os recursos possíveis de seu manual intuitivo de mãe para fazer com que Halperin usasse suas pernas,  e tendo fracassado em todos eles, ela decidiu entregar Halperin de vez a seu primeiro deus e virou-lhe as costas. Essa astuciosa estratégia certamente foi tomada depois de quando tiraram-lhes a foto, pois caso contrário Halperin não estaria sustentando um ar tão tsaresco sentado naquele muro. Um tanto do terror que passara a sentir pela vitória de sua vontade contra a vontade da mãe teria matizado de borrantes cores de insegurança aquela pose nababesca por sobre o muro. A mãe o deixara instalado sem rédeas em toda sua independência das exigências orgulhosas dela: se Halperin não queria dar-lhe a satisfação de ser vista como uma mãe exemplar, prenhe do direito de ter uma criança competitiva aos moldes do que exigiam a dissimulada e ávida fauna da maternidade dos parques; se Halperin não movia um milímetro que fosse de seus pezinhos apoiados em mimada tensão ao solo quando ela convocava que ele atravessasse por si mesmo aqueles dois metros de distância, em direção aos seus braços estendidos; se Halperin não tinha um pingo de diplomacia para arredar-se de sua posição budista e se pôr em pé invocando seu direito biológico a uma posição futura de bípede voraz brigando por seu espaço no mundo, então ela deixaria Halperin em paz e não o incomodaria mais com tais questões. E foi isso que fez. Halperin estava obsedado por seu momento perpétuo, jogando para fora os filetes de baba produzidos pelo frenetismo libidinoso de sua infância, inteiramente seguro de sua vitória, quando percebeu o ardil. Era tarde. Lembro-me estar debaixo da mesa da cozinha em uma manhã em que os ruídos pareciam mais infinitos e intrincados, vindos de um exterior que me interessavam apenas como incidências de um portal o qual eu jamais iria me aproximar, e estar deitado por sobre os pés da avó pentecostal, quando meu estômago começou a dar os indicativos gorgulhares de que deveria ser preenchido imediatamente.
                Os pés da avó pentecostal eram um dos refúgios preferidos de Halperin, pés os quais serão descritos com maior rigor detalhista em outra parte dessa história. O que se precisa saber agora é que tais pés, com seus preenchimentos de redes ferroviárias de veias negras de diversos graus de espessura e sinais topográficos de melanina derramada captados pelos satélites dos olhos de Halperin, eram tão aprazíveis de se deitar e narcotizantes para o sono que Halperin só admitia sair deles ou quando uma das necessidades da natureza reivindicasse, ou quando a avó pentecostal tivesse que emergir de seu próprio torpor por algum motivo, ou porque a mãe de Halperin viesse erguer seu corpinho carregável para o por em outro lugar. Dois desses motivos estavam descartados naquele dia, pois Halperin ouvia que do alto das pernas passando pelo escoro da cadeira e subindo acima da mesa a avó pentecostal emitia sua mistura de sons de cochilo, muxoxos de ladainhas e uma e outra admoestação de costume que lançava contra as filhas, mesmo essas estando no quarto a vinte passos dali distraídas com suas ocupações pessoais, e por isso, se contasse apenas com essa possibilidade de interrupção, permaneceriam ele e a avó naquela troca de carinho estático até próximo à hora do almoço. Restava as outras duas hipóteses, a da fome que começava a fazer com que Halperin ficasse em incômodo estado de alerta, não mais fechando os olhos e deixando a cabeça bambear malemolentemente por sobre um morro de carne inchada do seu travesseiro podal, mas atento quanto aos estranhos sinais que sua barriguinha ronronante lhe enviava, e a que era a reação causal imediata que sua mente associava à essa: o fato de que sua mãe era uma espécie de barômetro que se antecipava a todas as suas cobranças. Halperin deu-se pelo esquecimento de sua mãe quanto à mamadeira da manhã. Simplesmente notara naquele momento que desde quando acordara, descera da cama e engatinhara até os pés da avó pentecostal, nem sequer a sombra de uma mamadeira aparecera por seu caminho. Ele 

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