segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Sobre a possibilidade de se a alma humana possa ainda interessar ao demônio_ uma leitura de Doutor Fausto, de Thomas Mann



Em certo romance de Saul Bellow, o narrador questiona se existem divindades, mesmo que demoníacas, que ainda se importam com o destino humano. Thomas Mann vai mais além jogando com esse ceticismo durante toda a sua última magnum opus, Doutor Fausto, servindo-se para isso de profundos e muitas vezes sutis simbolismos, que vão desde o estilo anacronicamente rebuscado (desamparadamente atrás de um impossível helenismo), até à representação jocosa de um demônio bonachão e alcoviteiro, desinflado de quaisquer atributos de provocar medo. Reler Doutor Fausto no século XXI revolve todo esse peso multifacetado imposto pelo autor dando direito ao leitor de se chocar com o quanto Mann é atual e, recaindo aqui em um clichê não por isso menos verdadeiro, estava à frente de grande parte dos outros escritores de seu tempo. Embora A Montanha Mágica esteja à frente de Doutor Fausto na ordem de grandeza dos romances em alemão do século passado, existe uma enorme distância entre esses livros, de tal forma que os maravilhosos diálogos e monólogos filosóficos de personagens como Lodovico Settembrini, que se vê no primeiro, só às custas de um sarcasmo imoderado poderiam aparecer no último. Doutor Fausto é o elo mais forte do prosseguimento, senão mesmo o fundador, da literatura da brutal mea culpa e do retorno ao primitivismo espiritual depois da destruição de toda herança humanista que passa a acontecer na Alemanha, sendo Günter Grass seu principal continuador. DF é um romance de uma terribilidade que exige do leitor uma experiência real para se poder enxergar a devastação que ele traz. Minhas duas primeiras leituras dele não me tiveram nessas condições, de forma que na minha infância, quando o li pela primeira vez, eu só pude ver a superfície enganadora do humanismo, não percebendo que se tratava de uma angustiada elegia, e em meus trinta anos, em minha segunda leitura, eu ainda estava sob o efeito da propaganda em torno da grandeza de Mann e isso atrapalhou ver o quanto os arquétipos estéticos escondiam a complexidade da mensagem. Tendo-o lido pela terceira vez, em meus 42 anos, a pátina das tantas coisas que o passar da juventude e a admissão das circunstâncias inescapáveis da vida nos vai fazendo, tanto as boas coisas (como a paternidade) quanto as más (a quebra do egoísmo anestesiado que advém com a paternidade, ao enxergar subitamente o mundo como uma casa em processo de destruição na qual se teve como última consequência de tal egoísmo a imprudência de nele se colocar filhos), nos dá a disposição mais aproximada para apreendermos o grande horror do Doutor Fausto.

A começar pela compreensão certa de seu personagem principal, o compositor Adrian Leverkühn. Trata-se, sob amplos aspectos, de um artista medíocre. Não há nele nenhum traço da genialidade da tradição dos grandes compositores alemães e austríacos. Não há nele o ensejo de seguir em um antagonismo reacionário a tais compositores, no estilo revigorante que criadores musicais tanto da Europa quanto da América frentearam no século passado nas tantas experiências com o dodecafonismo, atonalidade, minimalismo, etc. Leverkühn, entretanto, é profundamente interessante como artista por ser, em uma profundidade de mesmo porte e frontalmente original, profundamente humano. Seu humanismo é expresso em uma lucidez tão impactante que se pode ver que o excesso se lhe revela um inferno desde quando ele era criança. Mann aqui começa sua fina catedral com um símbolo: no pressuposto de impossibilidade de que se faça poesia após os horrores de Auschwitz, na célebre frase de Theodor Adorno, Adrian Leverkühn é a encarnação desse silenciar peremptório e dessa impotência voluntária e inexorável à beleza. Não uma impotência, corrijo, mas a atenção veemente em abortar no mundo qualquer mínima expressão que a beleza ouse ter. Leverkühn, por isso, é arredio a todo contato humano, a toda coaptação, a todo pertencimento. Ele é a pragmatização da insofismável verdade de que não há divindades zelando pelo destino humano, de que não existe deus ou o demônio que perca tempo com os interesses do homem, verdade consolidada em definitivo com a perda de qualquer luz especial que o homem acreditou ter pelos horrores cometidos por ele os quais Auschwitz é apenas a ponta do iceberg. Leverkühn é o último homem íntegro, no paradoxo de ser o único que enxerga tão adentro a inocuidade da espécie a que pertence. Em oposição a ele temos esse outro personagem que é mais uma expressão da genialidade dessa obra: o narrador Serenus Zeitblom. Mann vai deixando que o leitor se sinta cativado e tenha completa confiança em Zeitblom, um homem excessivamente modesto quando ressalta a sua desimportância em relação a Leverkühn, de cuja vida ele pretende estar biografando no livro. 

Zeitblom é o reduto de todo o humanismo e grandeza alemã, a representação fiel do detentor da tradição helenista_ de tal forma que, ele confessa, uma das causas principais de ter escolhido sua esposa é ela se chamar Helena. A linguagem que Mann emprega no romance é a linguagem de Zeitblom, proparoxítona, palavrosa, pomposa, ciente de sua suma importância, amplamente digressiva nos estudos extasiados filosóficos das impressões do século. Essa estética retrógrada faz com que os lamentos de Zeitblom pelos avanços da barbárie hitlerista no momento em que compõe o livro em seu refúgio protegido, soem estáticos, redundantes, de um romantismo ao avesso, de uma paixão pelo pieguismo das tribunas. Páginas e páginas são preenchidas com seu canto despropositado às musas quando ele atualiza no livro o avanço do exército de coalizão contra a Alemanha, quando ele oferece no altar do sacrifício da História o espírito corrompido alemão. As relações entre duas figuras tão opostas, Leverkühn e Zeitblom, é o ápice da astúcia e sutileza de Mann. Como podem seres tão extremos ser amigos? Acontece que a amizade alardeada por Zeitblom é, para o leitor atento a todas as refinadas artimanhas do livro, de mão única. Zeitblom realmente parece ter uma adoração por Leverkühn, uma adoração que só tem sentido porque Leverkühn é a pobre representação do que sobrou da cultura teutônica. Zeitblom se obriga a amar Leverkühn quase porque não há outra opção. Esse seu amor é sua arma para justificar diante as evidências contrárias em uma terra devastada de que seu helenismo ainda é possível, mesmo que as composições de seu objeto de culto sejam pavorosas expressões de que ele está errado. Já Leverkühn, em seu exílio do mundo, nutre por Zeitblom uma atitude cordial, uma empatia que parece se adequar a um ato social. Quando ele realiza sua única tentativa de conivência com o mundo, o pedido de apresentação de suas intenções amorosas a uma mulher, ele recorre não a Zeitblom, mas a um violinista amigo. Faltam tantas revelações pessoais a Zeitblom de seu biografado, denotando a ausência reflexa de intimidade, que os lances biográficos são muito poucos no livro. Claro que o livro é escrito por Mann, e não Zeitblom, e Mann ocupa a maior parte de sua obra com reflexões e descrições que estão entre o que há de melhor na prosa. Os espaços de insuficiência na relação desses dois amigos, admitindo o uso de uma palavra tão taxativa, são moldados pela mensagem subliminar do rico simbolismo manniano.

Nos excessos da visão de Zeitblom vemos a realidade em contraprova da versão de Leverkühn. E nada mais exemplar dessa antinomia do que o episódio em que Leverkühn dialoga com o demônio. Essa é a chave do romance e sua cena principal, em que se estabelece a conexão de interpretações da venda da alma de Leverkühn ao diabo. Leverkühn contrai sífilis em uma casa de tolerância (com amplas menções a Nietzsche), o que suas duas tentativas de tratamento recaem em uma comédia de erros que o desestimula e faz com que o quadro da doença evolua para uma manifestação cerebral. Diante essa sentença, o diabo uma bela tarde aparece no bucólico quarto de Leverkühn propondo lhe dar precisos 24 anos a mais de vida afim de que ele possa completar com glória suas obras musicais. Leverkühn narra em uma longa carta tal encontro, carta que cai nas mãos de Zeitblom. E aqui temos um momento pleno de genialidade de Mann: o leitor lê a carta com o olhar contraposto dos dois personagens, com o olhar de uma ironia estoica além da ironia de Mann, e com seu próprio olhar que recebe o encargo de labutar na decifração de qual das leituras é a correta. Mann arma um jogo que enquadra toda a estrutura do livro. Mann coloca todos os seus detratores no chinelo com essa exuberante manifestação do quão longe pode ir a conexão de todas as forças expressivas da literatura no empenho de dar a sua estocada: ele amealha aqui o humor, o terror, a história, o futuro previsto, a nova visão estoica e sem ilusão de si mesmo do homem, o abismo, e, lá longe, na zona das últimas consequências, oferece as fagulhas indefinidas de alguma saída, de algum alento. Ele reverte o jogo e transforma o leitor que não esteja disposto ao uso de toda sua atenção em um conivente ou com o conformismo pueril de Zeitblom, ou com o niilismo perfeitamente retilíneo de Leverkühn. É dessas coisas das quais nunca se terá uma resposta determinada saber se houve mesmo a manifestação do demônio, se houve uma relação de compra, se houve uma promulgação de tempo pago com a punição eterna. Tudo demonstra que não. A leitura de um homem de 42 anos demonstra claramente que não, mas suas duas leituras anteriores teve como quase certo que sim. Pode ser que para o leitor de daqui 50 anos, sob o efeito de uma outra realidade circunstancial, de um outro panorama social, econômico e político, volta-se a acreditar com uma deliberação inteligente que o diabo realmente apareceu para Leverkühn, e Leverkühn realmente tenha aceito seu acordo. Mas eu estou em uma época cínica, em um mundo em que a overdose de informação mostra o quanto o estágio de sofrimento e egoísmo do homem se sustenta em um mesmo patamar de indigência que naqueles pouco distantes anos em que Leverkühn narrou seu encontro, e por isso é impossível crer que uma entidade divina como o demônio se ocupe com essas querelas inofensivas as quais para nós nessa dimensão paupérrima se afiguram de primeira ordem. O demônio de Leverkühn é um ser cômico, que se transmuta na figura de um banqueiro, de um artista menor, de um alcoviteiro, de um acadêmico com histriônica aparência suscitada por sua desproporcional preocupação com sua vestimenta; o diálogo tido com um ser circense destes, incapaz de produzir medo, passa pela baixa gama do psiquismo, não tem um pingo de grandiosidade, de graça, de aviltamento; Mann o insere propositadamente precoce na narrativa, mostrando que nele não há nenhuma comburência para ser o resumo final, a coda, não é o Grande Inquisidor; sob determinados aspectos, se percebe a preguiça bem construída ao se escrever a cena. Para Leverkühn, trata-se de uma alucinação que lhe deu algumas horas de alento em sua composição na escrita contra sua enxaqueca. Mas para Zeitblom, o antiquado, o conformado, o lamentador protegido em sua fortaleza a maior parte do tempo das desgraças da guerra, a carta parece real, parece haver mesmo uma importância no homem para que ele seja a peça principal em um jogo cósmico eterno entre dois deuses plentipotenciários. As grandes obras a preencherem os supostos anos conferidos pelo demônio não são sinfonias, grandes óperas, grandes sequências de quartetos e peças camarísticas, como haveria de ser se o demônio apostasse nos poderes de criação do espírito humano, mas Leverkühn compõe um concerto para violino (o qual mesmo Zeitblom admite ser uma obra menor), pequenas canções e um oratório que quer ser sua maior realização. O verdadeiro discurso bombástico do livro é o que Leverkühn faz a um grupo de convidados, quando da apresentação de sua Lamentação do Doutor Fausto, em que ele se desabafa de toda uma vida de silêncio e visão lúcida e apartidarismo dos ofícios do mundo, em que ele, de frente às sumidades da Alemanha, artistas comprados, aristocratas na iminência de sofrerem as consequências de seus crimes de conivência perpetrados pela nação, representantes da vida corrompida, revela com uma carga severa de sarcasmo seu pacto com o diabo, sua missão em destruir e impossibilitar toda forma de beleza, sua apoteosa do aborto e seu arauto da extinção. Um por um dos convidados vai saindo da sala diante a evidência da loucura do homem que diz esse discurso. Nesse momento, uma revelação fulmina o leitor: quem se manteve íntegro, não-conivente; quem foi detentor do único humanismo e helenismo possível por assumir o grande trabalho de ter que partir novamente de um primitivismo da estaca zero, quem foi o único que não vendeu a alma ao demônio, foi Adrian Leverkühn.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Natal com Cervantes



Garcia Marquez escreveu que só conseguiu ler Dom Quixote atendendo a uma recomendação de um amigo em fazê-lo sempre sentado na privada. Eu, finalmente, intentei a leitura desse grande Cervantes há uma semana, nesse feriado de natal, terminando o primeiro volume hoje, por procuração de que dois amigos também o fariam. Um desses amigos me contou que teve uma séria refrega com a esposa pois esta lhe cobrava igual a uma megera estalajadeira do romance uma viagem de final de ano. Pouco tive por perder o freio da língua e dizer a esse amigo o que me vem no fígado há anos sobre tal assunto, mas me contive diante sua cara de profundo desconsolo. Mas se eu estava viajando para a Espanha do século 16 com o livro, conhecendo a serra Morena e as florestas daquela região da Ibéria! O que ela quer, que eu que só vivo do trabalho para a casa me meta agora com a boemia e volte toda madrugada bêbado?, ele me disse. O fato é que, em meu egoísmo sensual de leitor que está comprometido por dias com a imersão em um livro extraordinário, vi em sua situação nada mais que a confirmação de Cervantes sobre a erraticidade de nossa espécie. Cervantes deveria ter sido uma companhia inigualável, um sujeito engraçadíssimo. Das tantas cenas de seu livro em que eu explodia em gargalhadas, há uma de tal plasticidade cinematográfica que me fez sentir o quanto esse homem de 400 anos atrás é desconcertantemente moderno e atual. Quixote e Sancho chegam a uma estalagem, a mesma que irá aparecer em um terço de todo o livro, e Quixote, como não haveria de deixar de ser, em seus ataques perenes de fantasia cavaleiresca, imagina que está entrando em um castelo, acolhido por um duque e sua família. Acontece uma série de situações impagáveis, mas a mais brilhante delas é Quixote confundir a funcionária beócia da hospedaria com a bela filha do estalajadeiro, uma vez que a primeira se deita com ele atendendo a outras conveniências da comédia de enganos cervantinos. Ao montar no Rocinante ao nascer do dia e partir, Quixote lança à indiferente filha do estalajadeiro um olhar que se desenha em toda sua hilaridade na mente do leitor; Cervantes faz com que eu estivesse lá assistindo ao vivo à tal cena, raiz de um sem número de inspirações de filmes e livros. O leitor em seu deleite constante aponta com uma juvenilidade restaurada a menções de Quixote em El Chavo del 8 na cena em que Sancho Pança rememora para o padre a carta que Quixote escreveu para sua Dulcineia Del Toboso, substituindo de tal maneira a colocação das palavras que transforme por completo o sentido da carta; aponta as semelhanças aprendidas por Monty Python`s Flying Circus da forma em que Cervantes retarda a catarse do humor de um livro para o outro, na escancaradamente exagerada cena de batalha entre Quixote e o galhardo biscainho; vemos as influências em Cem anos de solidão nas cenas do galo capão que remetem às histórias contadas por Sancho Pança que não passam do nonsense de se contar infinitamente o número de cabras que atravessam um rio. O livro é assim leve e fluido, descompromissado e despojado, escrito com a folga da mão para o papel e muitas vezes prescindindo de propósito e juízo, e por isso, fantástico. Na cena em que o padre e o barbeiro selecionam os livros da biblioteca de Quixote para serem queimados, o padre salva da fogueira o Tirant lo Blanc, explicando que neste o leitor almoçava e se deitava com seus personagens, tamanha intimidade se tinha com a humanidade deles. Assim fez Cervantes com seu Quixote. Escrito boa parte do livro quando Cervantes estava preso, o livro é de um humor único, de uma vivacidade e energia, de tal forma que a mim resolveu-se bem ver o que se pode dizer de uma filosofia de Cervantes. Só quem se presentear com a leitura desse monumento do espírito humano vai ver o que há de eternamente bombástico na fábula crítica de um homem alquebrado e seu escudeiro grosseirão à caça de um significado de maior piedosa transcendência que sobressaia ao tédio da existência. Já na metade do livro a gente passa a amar de tal maneira a Quixote e Sancho que quando Cervantes o descreve chocantemente em sua sujeira e "seu rosto de meia légua de comprido, seco e amarelo, a desigualdade de suas armas e seu mesurado jeito", não é pouca nossa raiva protetora de tal triste figura contra quem o tem assim. É um livro de leitura tão envolvente, que passei dias inteiros grudado a ele, não dando tempo para o Philip K. Dick que pretendia entremear, lendo-o em espanhol e português na edição bilíngue da Editora 34 (na excepcional tradução do Sérgio Molina). Bom, a última leitura desse ano será o segundo volume de D. Quixote.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Feliz Natal


Há uma série de coisas ternas que a gente vê pela internet que renova a combalida aposta de fé na humanidade. A última carta de natal da Rosa Luxemburgo, por exemplo; mas, mais afirmativamente, os comentários que seguem no Facebook do Ladeira Livros, que me dão aquela confortável impressão de que existem, enfim, pessoas ponderadas e com uma inefável alegria inteligente pela vida. Meu Feliz Natal nessa última meia hora do dia 25 de dezembro, repassado por essa sensação de não isolamento que tais pessoas me passam.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Nota sobre A história do pé, de J.M.G. Le Clézio



No filme Nostalghia, de Tarkóvski, um homem amargurado pelo exílio tenta repetir a ação obsessiva de um professor louco: atravessar uma extensa piscina vazia equilibrando uma vela acesa nas mãos, sem deixar que a chama se apague. A cena demora bem uns dez minutos, em completo silêncio, enquanto o homem retorna e refaz seu propósito um sem número de vezes, toda vez que um vento vem apagar a chama no meio do caminho. O espectador que acompanhou o filme até aqui sabe que a pensão italiana onde o homem deambula está em decadência, sem hóspedes e à espera de um sinal de desistência para que nela se instale todo o peso devastador do tempo, sabe que o professor morreu ateando-se fogo em um flagelo público e que na verdade o homem repete seu gesto em uma versão muito mais simples, visto que o professor atravessava com a vela acesa uma piscina cheia de água e de turistas beberrões e escandalosamente histriônicos. O núcleo dessa belíssima metáfora tarkovskiana é a representação da fagulha não adulterada da persistência humana em um mundo onde todos os caminhos levam à corrupção, à loucura e à dor, todas essas entidades organizadas em apagar o que resta de lucidez em um espírito absurdamente desacreditado. Toda obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, esse inigualável escritor franco-mauriciano, tem como eixo a incompatível mas incrível força real e desprovida de eufemismos poéticos que vem da fragilidade, se aproximando daquele outro memorável discurso de Stalker que diz "a dureza e a força são atributos da morte; flexibilidade e fraqueza são a frescura do ser". 

Os livros de Le Clézio, assim como os filmes de Tarkóvski, sempre me fazem restituir uma espécie de muito antiga consciência sobre a abrangência da arte, o que me faz deitar por um momento o livro no peito_ ou dar pause no filme_, para buscar mais fundo a origem desse pressentimento e firmá-lo melhor em seus contornos metafísicos. Lendo, por exemplo, o conto História do pé, de Le Clézio, semana passada, me veio uma quente sensação do que, já em minha infância como leitor, eu intuía ser a religião comunitária onde se juntam os retratos mais puros do homem, em toda sua nudez e crueza, e que essa arte, ou esse reservatório de informações seculares, é algo tão visceralmente verdadeiro e superior, que são poucos os escritores atuais, afogados em um urbanismo cibernético sobre-humano, que conseguem perceber e usar isso. Aliás, no afã de uma originalidade que lhes deem maior aceitação nesse mundo sintético, muitos escritores e artistas fazem é fugir o mais distante possível disso. Por isso que quando eu leio um autor tão antigo, tão sintonizado com o sagrado da solidão humana, como Le Clézio, o estranhismo quase inóspito de sua escrita me faz ter essa sensação de aproximação de algo esquecido, através do pressentimento, o que talvez seja um paradoxo pois pressinto algo que já conheço mas que a obtusidade cotidiana me apaga da memória mas não da alma. Le Clézio me informa retardatariamente que eu tenho uma alma, nessa altura do campeonato que saber disso parece não trazer nenhum benefício. História do pé é um recado sobre o que continua quando as máquinas travam, os índices econômicos despencam nas reviradas fatais dos começos de século, a imunidade passa a não ter mais nenhum escudo científico contra as doenças reformuladas pela engenharia do acaso, as saudades e as paixões são queimadas esquecidas nos álbuns de retratos; e tudo contado na mais simplória história de uma moça que engravida e insiste em ter o filho apesar da miséria, do abandono e de toda a incompatibilidade.

Dói ver o quanto é intenso em sua absoluta leveza esse conto, dói ter que ver de um autor que já ganhou o Nobel e poderia muito bem estar escrevendo o trivial elegante um texto tão reafirmador, tão desarmadoramente humano, tão ele mesmo crente em sua unicidade solitária de ter um alvo comburente do outro lado da página, na presença do leitor que se emociona, que se transforma. E Le Clézio já fez isso antes, muitas outras vezes, no romance da quarentena que é de um nível de beleza sobrenatural_ e note: Le Clézio não é um poeta, não tem o ranço da poesia vernissagem_, naquele começo da história sobre sua mãe em que dos vaticínios médicos protecionistas do homem saciado moderno ele fala do quanto a fome fazia com que se desejasse encher a boca com os cristais acinzentados do sal, e dava sede de gordura e vontade de beber o óleo das latas de sardinha. O que mais assusta em Le Clézio é que seus personagens jamais brincam de existir, jamais acalentam o prêmio da vida por esse desgaste suntuoso do enorme benefício passageiro oferecido; jamais são suicidas, por mais que sofram e são confrontados pela história e pela natureza, por mais que sejam diminuídos a um nível de ruído ruinoso pelo furacão que devasta do lado de fora de suas peles (e todos não possuem nada mais de patrimônio do que suas próprias peles). Eles existem, não brincam de existir. A verdade incontornável de poderem tocar esse mundo com os sentidos os posicionam acima das teorizações tanto do desespero quanto das espiritualidades vendedoras de esperança: eles próprios em sua carnalidade são o Espírito, ancestral, indeterminável e não conceitualizável, vagante em sua pobreza cheia de inesgotável mérito; não precisam de instituições lhes dizendo como é que se vive: eles vivem. E digo eles por uma armadilha de encadeamentos sentenciosos da língua portuguesa, porque a maior parte é de mulheres, Le Clézio povoa sua obra de mulheres_ os contos de História do pé tratam cada qual de uma mulher em determinado momento e geografia do globo. Leio não me recordo onde que o homem moderno vive simulacros de situações verdadeiras: o pai, por mais que ame seu filho, finge ser pai, talvez mesmo pela adaptação à sobrevivência das condições da paternidade a um cotidiano de trabalho que o priva da presença do filho: assim, na omissão involuntária, ele finge através das creches, dos solilóquios à mesa de jantar, dos parques do domingo, que se investe de uma paternidade imaginária que a soma rejeitada de suas negligências desmente.

Ujine, a mulher do conto de Le Clézio, é um axioma de permanência que repete aquela frase de Rosa de que um menino nasceu_ o mundo tornou a começar. É um estudo sobre a fragilidade confrontadora e o equilíbrio feminil: o professor de Nostalghia conservava sua chama humana intocável diante a sevícia, mas se deixou queimar pelo excesso de lucidez. Ujine, levando ao término a sua gravidez, dá o nome à filha de Eulália, o nome do feio mato chinês invasor tido por todos como praga que ela via nos campos de Londres e que a restituía à verdade de que não sabia nada, mas que o poder da sua onisciência bastava.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Relendo Doutor Fausto



O ano começou com William Faulkner e termina com Thomas Mann. Meu exemplar de Doutor Fausto, em capa dura e lançado pela Companhia das letras, me chegou há dois dias. Mandei dois e-mails à assessora de divulgação da editora perguntando se eles me enviariam mesmo o livro, pois eu havia feito a solicitação firmando-me no lançamento mensal que eles sempre me mandam pela parceria que este blog tem com a empresa, e não obtinha resposta. Mandei uma última mensagem dizendo que precisava saber urgente pois, se não me mandassem, eu iria comprar esse grande livro do Mann. Me responderam que haviam enviado, que era só eu esperar. Entre todos os livros que tenho, meu maior fetiche sempre foi Doutor Fausto. Penei de desejo por tê-lo, na minha juventude de estudante desabonado, e fiz uma economia feroz para adquirir um exemplar escangalhado. Li-o a primeira vez aos 15 anos. Fiquei profundamente maravilhado. Li-o a segunda vez aos 30, e de novo senti o poder dessa obra. E agora, releio-o pela terceira vez, e já estou na página 143. O que sinto é uma inebriante felicidade; sinto-me irmanado com Mann, e parece que estou lendo o romance pela primeira vez. Sinto que agora é que estou absorvendo plenamente toda a imensa riqueza do livro. Passa-me uma secundária preocupação de se a idade não está me fazendo um leitor misantropo como o velho Borges, que anunciava que só lia livros com a idade mínima de cem anos. Doutor Fausto tem 68 anos, mas a lógica é que os livros dos grandes me arrebatam e comovem de uma maneira única, só eles tem a legitimidade de estarem me dizendo algo realmente essencial e indispensável. Por isso minha ânsia de ter esse fetiche em capa dura, já que sempre o tive em edições mambembes e por altíssimos preços. Encontro no livro uma passagem que expressa uma certeza antiga:

"Para o adepto das Luzes, o termo e o conceito "povo" sempre conservam qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões, e ele sabe que basta apostrofar a multidão de "povo" para induzi-la à maldade reacionária. Quanta coisa não aconteceu diante nossos olhos em nome do povo, e que em nome de Deus, da humanidade ou do direito nunca se deveria ter consumado! Mas é um fato que, na realidade, o povo permanece sempre povo, pelo menos em determinada camada da sua índole, que é precisamente a arcaica, e que habitantes e vizinhos do beco dos Fundidores, pessoas que no dia das eleições votaram no Partido Social-Democrata, eram ao mesmo tempo capazes de vislumbrar algo demoníaco na pobreza de uma velhinha, que não tinha recursos suficientes para pagar uma habitação acima do solo, de modo que, quando ela se aproximava, seguravam os filhos para protegê-los contra o mau-olhado da bruxa. Se na atualidade se voltasse a entregar à fogueira uma mulher desse tipo, o que, com leves modificações da justificativa, não deixa hoje absolutamente de ser inimaginável, eles se plantariam atrás das barreiras erguidas pela municipalidade e olhariam, embasbacados, mas provavelmente não se revoltariam. Falo do povo, porém aqueles impulsos populares, de natureza arcaica, existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo."

terça-feira, 10 de novembro de 2015

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Os livros que eu gostaria de ler se tivesse doze anos



Este é um dos textos pelo qual mais recebo elogios por e-mail. Escrevi-o em um ambiente de hostilidade, e longe de casa. Sentia-me então tão pra baixo, que liguei o computador e pus-me a escrever sem planejamento e intenção nenhuma. Senti que se tratava de um dos momentos pessoais raros em que a escrita vinha para me aliviar. Poucas vezes aconteceu tal coisa. Como frequentemente acontece, quando o releio, não o meço pelas qualidades literárias, as quais não vejo muitas, mas pelo grau de honestidade. Os textos honestos, inclusive com coragem para evidenciar suas fragilidades, são os mais poderosos. 

Ontem o Rui veio aqui em casa. Foi embora hoje. Saímos só nós dois, demos volta na praça, fomos a uma espécie de mirante de onde se vê toda a cidade. Não houve muito diálogo. Mas houve harmonia. Eu via no olhar dele a confiança. E as coisas estavam bem mais felizes, no íntimo. Era como se ele tivesse lido meu texto. Eu jamais lhe mostraria meu texto. Não por vergonha ou coisas afins, mas que é parte da filosofia minha que meu textos pertencem a uma dimensão pessoal irrevogável. Eu cheguei a esfregar-lhe os cabelos quando entramos no carro para a volta pra casa. Ele se deslumbrou com as três estantes da minha biblioteca. Hoje, quando ele entraria no carro para ir embora, eu o levei lá e lhe entreguei três livros. Três livros longamente pensados, os livros que eu gostaria de ler na idade dele, aos 12 anos. Dei-lhe o melhor volume de contos de Chécov que tenho, e A metamorfose, e Ratos e homens. Chécov, Kafka e Steinbeck. O primeiro lhe pega pela ternura seca, o segundo lhe desperta o esoterismo através da visão brutal dos muros do presídio, e o terceiro é a aventura humana profunda que lhe atiçará a vontade de partir para os outros tantos grandes autores que terá pela frente. Depois (juro!) que percebi que os dois primeiros foram realmente minhas leituras aos 12 anos. Só Steinbeck que li depois dos 20.

Ele não fala nada de si mesmo. Sua avó é que nos conta que ele lê muito, que ele recebeu pelo segundo ano consecutivo o diploma de melhor aluno da turma, que ele lhe confessa o desejo de ser médico e escrever um livro sobre sua vida. Eu pergunto que livros ele tem em casa, e percebo que a falta de jeito dos familiares lhe dá a velha ração de livros indigeríveis da antiga literatura nacional. Eu entrego esses livros e ele os olha, e percebo o fascínio. É como se ele mexesse um saco de misteriosos brinquedos artesanais mágicos, que é a sensação que eu sempre tenho diante livros e sempre terei aos 80 anos. Uma felicidade boba, engrandecida, ingênua. Sempre será ingênua. É a ingenuidade que não morre nunca. Eu lhe dou um abraço, nada de procurar aproximações com o abraço que ele me deu aos 3 anos, e ele me envolve molemente as costas. Tímido incorrigível.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Lendo As rãs

A foto saiu desfocada pois tive que apertar o clique do celular com o nariz.


Espanto-me diante a modéstia e despretensão de Mo Yan. Tento correlacioná-lo a algum outro escritor que conheço, mas não me lembro de já ter-me deparado com algo do tipo. Mo Yan é um narrador puro; um contador de histórias cujo enorme prazer que sente ao escrever transparece visivelmente em seu texto. E é isso: ele escreve apenas pelo prazer, o que pode soar contraditório diante aquela máxima de que o prazer deve ser o único mote de um escritor. Mas a verdade é que sabemos que não é bem assim, geralmente o mote mais motivacional de escritores é a vaidade. E Mo Yan quase não tem vaidade (coisa impossível para um artista de qualquer expressão); ou aparenta estar descansadamente independente a elogios e a reconhecimentos desde que tenha o papel e a caneta em sua escrivaninha. Difícil não associar tal humildade com o condicionamento imposto pelo regime maoista. Em Mudança, primeiro livreto dele editado aqui, chega a ser desconcertante a acriticidade que seu alter-ego narrador demonstra, uma simetria tão pacificamente espelhada nas regras do Estado que é uma das demonstrações na literatura recente da perfeição apolítica. Li as 50 primeiras páginas de As rãs, que me chegou hoje, impressionado mais uma vez com o despojamento e a linearidade infantil de Mo Yan. O tema do romance é um achado, o que muito indica ser retirado da biografia do autor; um desses temas tão bons que é praticamente certo o sucesso da empreitada. E Mo Yan começa a narrativa com uma carta, e segue convertendo toda a maravilhosa história a simples exercícios literários inspirados por um professor de literatura. Comparam-no com Garcia Marquez, pelo realismo fantástico e pela semelhança entre os personagens simplórios de povoados esquecidos em dois cantos do mundo (um na Colômbia, outro na China), mas enquanto Gabo sempre inicia com majestade e exuberância, Mo Yan apenas escreve, sem frases marcantes, sem imagens sinfônicas. E isso é incrível! Funciona magistralmente! Prende o leitor. Mo Yan recorre aqui e em Mudança ao narrador infantil, o que encaixa a seu artifício de ingenuidade. Lembra Abbas Kiarustami; lembra, estranhamente, Tarkósvki. Sua prosa tem uma cristalinidade genuína, uma limpidez desarmante que parece ser toda criada por Mo Yan. Não se trata do que a literatura japonesa, por exemplo, consegue produzir com essas características, pois esta tem, ao fundo, um forte acento filosófico e niilista. Já Mo Yan não, ele prescinde de peso. O outro chinês que já li, aliás também um prêmio Nobel, no grande romance A montanha da alma, de Gao Xingjian, a narrativa é também imensamente simples, recorrendo à pintura, aproximando-se da poesia paisagística. Já Mo Yan afasta-se também do artifício da poesia.

Uma última nota: foi difícil conseguir comprar As rãs. Fui a três livrarias na capital, e nas três tive que fazer malabarismo para que os funcionários entendessem o título do livro. Aí tem As rãs? Uma das meninas, que trabalha na Fnac, chegou a tripudiar: Mas vocês me chegam com cada nome complicado de livros. Daí eu respondi: sabe perereca, aquele bichinho branco que parece um sapo e pula na gente no banheiro? Pois é o outro bichinho, o maior, a rã. Rã. Daí coloque ela no plural, e pimba: as rãs. Outro funcionário pensou que eu estivesse falando o nome de um alemão, Härs Hansen. E a confusão era contagiante, eu percebia que meus músculos responsáveis pela fonética não foram treinados suficiente para lidar com um trava-línguas onde se encontravam as nasalações mais perigosas da língua portuguesa, o s, o rr, e o a átono. Isso tudo para não ter o romance em nenhum lugar. Comprei-o pela Livraria Cultura, já que o livro físico na Amazon havia se esgotado e só tinha o para o famigerado kindle.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Dr. Lao



Noel Gallagher foi fotografado no metrô, em Londres, nessa semana, indo para uma participação no show do U2. Para nós brasileiros isso sempre vai soar como se em vez de um simples ser humano usando da eficiente infra-estrutura de seu país, houvessem fotografado um unicórnio no centro da cidade. Para os brasileiros que vivem nas metrópoles desse país, é inconcebível que alguém com sã consciência e liberdade de escolha desloque pela cidade em outra coisa que não seja seu carro, de preferência fabricado no máximo nos últimos dois anos, com seguro em dias e com todos os opcionais de conforto. O brasileiro morre por seu carro, isso é fato (basta usar um pouco da memória televisiva, dos tantos programas policiais que mostram o morto no banco do motorista no registro de resistência ao assalto). O brasileiro correlaciona diretamente o uso do transporte público nacional com a sina de um fracasso vergonhoso e inexorável. Em nossa mente, por mais que tenhamos que eufemizar, quem usa o ônibus e o metrô por aqui é um derrotado. Pensei em intitular esse post com "Complexo Vira-lata", assim mesmo sem a preposição "de". Penso que não é à toa que reclamamos tanto do Brasil; não é um chiste involuntário, um TOC auto-tourette; estão errados os que tentam cunhar o clichê de inadmissibilidade que dizem não suportar quem fala mal do país, dos que usam frases como "se fosse no Brasil...". O brasileiro fala mal do Brasil porque o conhece profundamente, conhece da maneira mais ineludível, através da prática diuturna inescapável. Engana-se quem julga o brasileiro um alienado apolítico. Meu sonho de toda a vida era ser alienado apolítico. Lembro perfeitamente de, aos 13 anos, ler Stephen King, e ser admoestado por um amigo de colégio que lia Dias na Birmânia a ler coisas importantes. Por aqui, o sujeito é obrigado a saber a taxa do dólar, os nomes dos presidentes das duas casas no Congresso, a saber pelo menos 5 siglas de impostos federais, a saber as tipificações de pelo menos 3 crimes do funcionalismo público, e a ter ideias complexas sobre técnicas de equilíbrio diplomático entre líderes políticos arrestados em investigações policiais para a mínima gestão das aparências. Como eu disse alhures, o Brasil é o país que não te deixa em paz. O brasileiro, seja de que classe econômica ele for, é um ser complexo, profundo, que usa da dissimulação sem a falsa moral dos calouros, e que sabe que lhe pesa a maldição de não poder dizer que leva a vida que lhe dê na telha, que zela com independência de sua família, pois o que acontece na política é a mão direita da qual depende para por a comida na mesa. Um amigo meu, semana passada, me recordou que há dez anos haviam apenas dois carros estacionados na praça pública da cidade interiorana onde moro. Ninguém naquela época tinha carro. Hoje, na referida praça, há mais de cinquenta carros. Todos os dias de madrugada eu passo, a caminho do trabalho, pelo maior colégio público da cidade, e nas ruas de frente é onde estão os melhores carros: os professores concursados são os que compram os melhores carros. Os servidores públicos que mais ganham mal, são os melhores clientes das concessionárias, das linhas de crédito consignado, e das financiadoras. É um erro deles, os que deveriam alertar os alunos sobre consumismos e economia, sobre danos ecológicos, sobre gastar a grana em coisas intelectualmente mais produtivas? Creio que não. Há dez anos esses velhos homens e mulheres atravessavam os morros à pé; seus correligionários de profissão das grandes cidades purgavam idas e vindas imprensados nas latas perigosas dos ônibus do transporte público. Talvez seja mesmo a maior lição deles mostrarem para seus alunos a pragmática apreensão do oportunismo comprando aqueles pomposos e brilhantes carros negros de quatro portas, o movimento mais astuto que eles poderiam ter na contra-dança com o país que a qualquer momento fará o passo de lançar-lhes ao ar sem a devida segurança, os farão se estrebuchar de barriga no chão. Keanu Reeves, Michael Douglas, Charlie Sheen, Al Pacino, e os grandes executivos que aparecem nos filmes em pé segurando confortavelmente as barras dos metrôs: em nossa mente inflamada de estoicismo, isso sempre parecerá absurdo.

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Claro que esses últimos 15 dias foram de total felicidade. Meu filho Eric nasceu, e tudo deu certo. A pressão sanguínea da Dani disparou na noite de sábado, dia 10, e o médico achou melhor antecipar o parto para a manhã de domingo. Cheguei à capital e ele estava deitado no bercinho, todo envolvido por mantas, à mostra no berçário através da vitrine. Só naquela manhã nasceram 10 bebês. O plano de saúde cobriu tudo, a cesariana, a laqueadura (a Dani não pode ter outra gravidez, o que conformamos), o apartamento de luxo por 4 dias (na verdade cobria um apartamento simples, mas não havia mais nenhum disponível, o que tiveram que nos dar o de luxo). Quando ela teve alta, saímos pela porta com as costas murchas, esperando alguém nos chamar para acertarmos alguma conta pendente. É que já estamos acostumados. O parto em que a Dani teve a Júlia, paguei 8 mil reais. Era um parto de alto risco, e a obstetra foi de um mercenarismo grotesco, contando cédula por cédula na minha frente, um dia antes da cirurgia. E coube a ela me legar uma cena constrangedora, pois a obstetra aparentemente esqueceu de repassar a parte da grana que lhe ficou incumbida para a pediatra, e a pediatra cobrou rudemente a Dani o dinheiro horas após o parto, no quarto em que a Dani estava instalada. Eu não estava perto, por sorte, pois nem sei o que eu teria feito. O plano cobriu a cirurgia cardíaca da Dani, dois anos depois, e, após a cirurgia, o cardiologista me liga cobrando 3 mil reais por materiais extras que foram necessários no procedimento. Ele foi tão gentil na extorsão, e eu estava tão aliviado que tudo tenha dado certo, que não titubeei em pagar. Assim é. Eu tenho aversão a dinheiro, devo dizer. Gosto de dinheiro e não sou nenhum asceta, não é isso que quero dizer. A Dani é que fica com os cartões bancários, e ela que gerencia a casa. Eu fico meses sem tocar em dinheiro, o que me faz muito feliz. Lembro a época em que me formei e comecei a trabalhar, em que tirava do banco apenas o aluguel de um quarto em que se incluía almoço e janta. No final do ano, tirei o extrato da conta e havia lá o que considerei uma fortuna. Comprei um carro à vista, por pura necessidade. Me assombra que médicos, que são os profissionais milionários por natureza, se mostrem tão gananciosos. Para onde vai tanta grana? Eles usam para quê? E sempre me pareceu de uma rasteirice paradoxal que eles usem os momentos de maior felicidade de seus pacientes para exercerem essa ganância desmedida. No momento pleno em que eles conferem a vida, eles se investem contra a plenitude que eles foram veículo para se rebaixarem à necessidade mais mesquinha da extorsão; e sem a mínima precisão. Talvez seja apenas o vício que o exagero de remuneração lhes acomete. Talvez o jogo de angariarem dos parentes aliviados um pouquinho mais de grana seja o modo adrenérgico compensador para sentirem com exatidão a mágica científica que fizeram. Talvez eles não compreendam o quanto fizeram felizes os que no fundo no fundo pensavam na morte, e a materialização do dinheiro seja a forma para eles empurrarem um pouco para o lado a insensibilidade da rotina.

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Houve apenas um contratempo nessa felicidade. Um dia depois do parto, minha irmã voltava às oito da noite da academia onde trabalha, na companhia da minha filha, e ao estacionar na frente do prédio da minha mãe, dois motoqueiros lhe apontaram armas e lhe levaram o carro. Deram tempo para que ela retirasse minha filha com a cadeirinha do banco de trás. Eu estava aqui na minha cidade. Por uma infeliz prova de que eu estava certo em minha recomendações, aquela noite foi a primeira vez que ela desrespeitou minha ordem de que a Júlia não poderia sair após as 18 horas. Uma semana antes, eu proibi que levassem a Júlia a uma festa de criança, por essa estar marcada para as nove da noite. A Dani me ligou chorando, e elas devem ter falado horrores do meu pérfido coração em não me amolecer diante a decepção da Júlia em não poder ir ao evento. Fui taxativo e disse pelo telefone que elas estavam na cidade que figurava entre as 32 cidades mais violentas do mundo, e seria uma isca sem igual um carro com três mulheres e uma criança vagando pelas ruas à noite. Se elas estivessem em Sheberghan, no Afeganistão, poderiam ir, mas estavam em Goiânia, Brasil, a trigésima segunda cidade mais perigosa do mundo. Foi a pior oportunidade que tive para dizer "eu te disse, eu te disse". Dois dias depois, a delegacia de furtos e roubos liga para minha irmã, a busca em casa e a coloca no meio de dez homens fardados de preto dentro de um camburão e saem cortando sinal à toda velocidade, até um bairro de periferia onde está seu HB20 largado no lado do calçamento. O porta-malas cheio de produtos roubados, além de cheques e documentos pessoais. Minha irmã acha um tanto anti-profissional que a polícia tenha escolhido esse método espalhafatoso para mostrar eficiência. 14 dias depois_ ontem_ tentam roubar o carro da minha mãe, quando ela e minha esposa estavam diante a clínica obstétrica. Elas chegaram na hora de ver os criminosos quebrando o retrovisor e levando o espelho com eles.

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Não troco por nada minha vida no interior. Não há bares sofisticados e nem eventos culturais aqui; mas eu chego em casa em dez minutos de carro. Quando fico um dia na capital, eu sinto a doença da capital querendo entrar em meu sangue. É uma vida bestial, suicida, infernal, mecanicista e estúpida. Goiânia é um dos escalões do inferno. Aquilo não foi feito para seres humanos. São Paulo, um tanto pior e mais bestial, é o objetivo a ser alcançado por Goiânia, em pouco tempo. Daí não sabem porque o Brasil está como está. Não há tempo para pensar em longo prazo, quando se trabalha 8 horas por dias e se gasta 4 horas no trânsito (caso de São Paulo), ou 2 (caso de Goiânia). O indivíduo não se integra mais nos problemas da sociedade, porque a exaustão o torna apenas um burro da carga. E isso não é apenas os baixos funcionários, mas executivos, os médicos loucos por grana, os juízes, etc, etc. Todo mundo. Não sobra tempo para os filhos, que são criados apenas sob a influência dos órgãos oficiais de contenção, sem carinho e sem ternura, sem atenção. Daí sobrar tempo para pensar em Cunha, em CPMF, ou o que seja? Animais cumpridores de movimentos pavlovianos. Não me espanta que estejam cada vez menos espiritualizados. Os espiritualizados numa rotina dessa se matam. Nenhum espírito aguenta essa pressão. Não largo, por nada, a vida boçal com excesso de tempo e excesso de espaço que tenho aqui. Aqui é único paraíso possível, idiotas!

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Há uma cena que nunca me saiu da cabeça no magnífico filme As sete faces do dr. Lao. Uma mulher entra na cabana do vidente cego do circo do dr. Lao e lhe pede que leia o futuro nas linhas da mão. O vidente, entediado, se recusa. Ela, uma senhora requintada, vestida com pomposidade elegante, com seu ar inamovível de superioridade loura, ameaça com ira o velho cego, perguntando-lhe quem ele acha que é ao recusar um pedido de uma dama digna como ela. O velho então prende a mão da mulher à sua e perfila toda a vida futura que a dama terá pela frente, anunciando que nunca lhe aparecerá o cavalheiro que ela espera para lhe pedir em casamento, que ela jamais será a pessoa socialmente influente que almeja ser, que ela envelhecerá na solidão sem ter cumprido nenhum de seus sonhos de grandeza e glória, que ela morrerá esquecida por todos em sua casa solitária, que ninguém ao longo dos anos que lhe restam a amará ou se importará com ela, e que sua lembrança se apagará assim que ela for enterrada. A mulher consegue soltar sua mão e sai aos prantos desesperados da cabana, causando um alvoroço entre os frequentadores. Ela se esconde ao lado de uma tenda, chorando ainda mais, e uma outra mulher a encontra e lhe pergunta o que se passa. A dama segura o choro, limpa a cara, e diz que se sente muito feliz porque esteve com o vidente cego e este lhe assegurou que todos seus propósitos de felicidade se cumprirão imediatamente. Não por menos sinto a atração de chamar a internet, com seus blogs, twitters e Facebooks, de dr. Lao.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A Conexão Bellarosa, de Saul Bellow



Uma das várias facetas que demonstram a originalidade e independência da obra de Saul Bellow é esta que indica que também em sua produção tardia ele virou as costas para as tradições e os costumes da classe literária. Enquanto a norma involuntária dos romancistas_ em maior grau os consagrados_ dita a tendência de se tornarem mais sérios na velhice, escrevendo de forma hermética e rebuscada (vide Faulkner em Uma fábula, e Henry James em As asas da pomba), Bellow traçou o caminho contrário, areando seu estilo ao máximo, limitando-se ainda mais às frases curtas, abraçando um coloquialismo que faz pensar que é um despojamento inusitado para quem escreveu 4 dos maiores romances do século passado, recebeu todos os prêmios e encabeça a lista do cânone da literatura norte-americana. As 4 novelas publicadas pela Companhia das letras esse ano, sob o título de uma delas, A Conexão Bellarosa, é um bom exemplo da extrema fluidez da escrita tardia de Bellow. As 4 novelas começam como se Bellow estivesse na verdade escrevendo despretensiosas crônicas para revistas de celebridades; há o tom cínico disfarçado de trivialidade glamorosa que se vê principalmente em discursos políticos, e que de certa forma desconcerta ao enganar o leitor com uma falsa voz panorâmica como se, em vez de se inciar uma narrativa, vai se embrenhar em um texto de jornalismo literário. Tais inícios mostram que Bellow queria testar em seu últimos textos uma abordagem mais fiel à sua declaração de que a primeira regra da escrita era que a coisa surgisse com facilidade. Nada mais fácil e leve que esses começos, como o de Um furto:

"Clara Velde, para começar pelo que nela chamava mais atenção, tinha cabelos louros curtos, com um corte elegante, que cresciam numa cabeça incomumente grande."

Ou o despretensioso começo de Ravelstein, que revela todo o astucioso brilho da voz de Bellow:

"É estranho que os benfeitores da humanidade devam ser pessoas divertidas. Pelo menos nos Estados Unidos isso frequentemente é assim. Quem quer que deseje governar o país precisa entretê-lo."

E as narrativas seguem da mesma maneira prenunciada pelas primeiras frases, com agilidade, pulos e regressos no tempo, anedotas sobre a inefável tendência dos personagens bellowianos a tangenciarem um extraordinário cotidiano, uma elétrica falta de tempo em ater-se a um só detalhe, substituindo a observação minimalista por um rateio aéreo onde se apreende com deleite os pontos altos e baixos do extenso relevo das vidas pessoais de seus heróis e heroínas. Adorno escreveu que nos ínfimos da beleza da paisagem norte-americana se revela toda a imensidão do país, vastidão que Bellow explorou talvez como nenhum outro romancista em seus grandes painéis da América. Em livros como Augie March e Humboldt, a efusiva vida americana pulsa com esplêndida exuberância, com inextinguível paixão vital, muitas vezes invocada pela pena esotérica de Bellow no entremeio das frases, local mágico onde, como reconheceu Philip Roth em suas releituras dessas obras, acontece uma infinidade de coisas. E por isso, em suas últimas obras, vemos a compensação de Bellow por dar mais vazão à outra face da dicotomia de autor americano e médio-oriental que ele tinha, abandonando o centro de visão do individualismo das grandes entidades que eram seus personagens principais, e abordando agora a multitude de vozes que ficou como réstias não trabalhadas de seus livros maiores. O Bellow tardio é um escritor judeu cuja necessidade de extravasar sua voz negligenciada da aldeia oriental transforma a grande cidade e os homens e mulheres cosmopolitas em uma repaginação urbana dos loucos, infiéis e comerciantes usuários dos contos em iídiche de Isaac Bashevis Singer. Seus livros já não mais se detêm em intrincadas almas argumentativas e afundadas em lutas contra a Providência ou a América financeira, nem comporta mais dissidentes estoicos dos selvagens eventos do século XX. O que vemos nessas novelas são representantes divertidos das ideias ainda não testadas do autor: o magnata que quer resgatar o amor da juventude; a mulher emancipada que se confronta com dilemas morais imprevisíveis ainda que sempre intuídos; o intelectual sentenciado pela medicina que participa ativamente dos embates contemporâneos através das técnicas de comunicação avançadas que o ligam de sua cama com o mundo. É recomendável que se leia esse livro após a leitura de pelo menos um dos grandes livros de Bellow, para usufruí-los com plenitude, pois aqui se tem a prosa fulgurante, a inteligência viva, a brincadeira feliz da escrita de um dos maiores escritores de todos os tempos. São como consolações a seus admiradores por ter-se que se atender às limitações biológicas da partida; mas a última frase desse volume condiz com a saudade cogitativa que é deixado no leitor assim que fechado o livro:

"Você não entrega facilmente para a morte uma criatura como Ravelstein."

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Um Lear americano (por ocasião dos 20 anos de O teatro de Sabbath)


Ao longo dos anos de vivência pessoal em que nada de muito diferente resta a nos esperar pela frente e do aprofundamento cada vez maior numa era tecnológica onde os prazeres intelectuais se amoldam a modelos rápidos e superficiais, é uma surpresa poder ler um romance como O Teatro de Sabbath, lançado há apenas recentíssimos quinze anos. Nessa epopéia que não se presta a nenhuma classificação convencional, Philip Roth atinge a marcação histórica de finalmente lançar a pedra fundamental de sua escrita no escore dos grandes nomes literários do século XX, após uma série de obras menores e três acertos que, sem o salto olímpico que o autor se reservava dar na produção do sexagenário, provavelmente se perderia numa bibliografia limitada a uma prosa competente, mas perecível. A trajetória de Mickey Sabbath, o herói enroldado em um triste ciclo orgiástico adotado como contra-dogma para suportar a bestialidade cotidiana, compõe a mais poderosa, engraçada, virulenta, desesperada, sequiosa por vida e paixão e, ao mesmo tempo, desapaixonada e suicida, sequência de episódios sobre a deploração humana, construída numa prosa igualmente retumbante, fluida e genial. São 507 páginas na reedição da Companhia das Letras (que teve a misericórdia de atender aos vários pedidos de leitores postados no site da editora, para que se relançasse esse título há muito esgotado) em que o completo domínio de Roth por seu projeto transparece tão nitidamente que o leitor tem aquele privilégio raro de compartilhar a felicidade do trabalho, o cansaço, a volúpia e a impressão de vazio nostálgico após a leitura concluída, que o autor sentiu ao escrever. Algo que só se sente com os grandes romances e que a mim se liga ao manuseio físico do volume em que este apresenta no final os sinais da intimidade adquirida, o amarelar da lombada das páginas, a perda do brilho da capa, a aparência de que foi espremido e digladiado com volúpia.

Como outro romance erótico _ Lolita _, o tema de O Teatro de Sabbath está longe de ser o sexo. E nisso é bom demorarmos um pouco. Tendo a achar que com os outros leitores aconteça a mesma falta de entusiasmo que eu sinto diante ao romance erótico. O que poderia ter de mais desalentador do que confrontar-se com uma promessa não cumprida, uma propaganda onde as fotos ilustrativas coloridas abundantes não correspondem ao cenário real do destino da viagem, o filme revolucionário que repete mascaradamente as mesmas técnicas de espanto exploradas em excesso pelo cinema europeu? Pois romance erótico é um rótulo fadado desde o início ao banho gelado do anti-clímax, considerando uma classe de leitores bem intencionada para a qual o clímax ainda desperte um desejo estético de reavivamento nostálgico de antigas descobertas. Nada pode haver de novo no domínio da imaginação erótica que ganhe restrito potencial na palavra escrita, que possa prescindir da imagem visual e dos recursos da sonoplastia, bastando-se naquilo que hoje só compreendemos com uma generalizada percepção antropológica em O Amante de Lady ChatterleyNexusA Filosofia da Alcova, nos relatos de Anaïs Nin , etc. Nenhuma perversão hoje em dia é velada o suficiente para acharmos que não será na net, nos   shows das cantoras do show business avalizadas pela Camile Páglia, ou nos eventos sociais da multidudinária vida cosmopolita noturna, mas nos livros, que encontraremos a redenção carnal de lubricidade inédita nunca alcançada. E um autor como Roth é inteligente o suficiente e comprometido por demais com áreas de exploração espiritual menos enredadas com as exigências industriais para não se ater a orgasmos, adultérios e primadas descrições de cópulas para tornar o romance interessante a uma fatia do mercado. Como em LolitaO Teatro de Sabbath fala sobre a redenção pela repulsa, extrai do verniz colorido e frenético do sexo comercial tornado onipresente nas vitrines midiáticas a única forma ainda provocante de tornar a narrativa sexual genuína e legítima: o sexo como fator de omissão aos estereótipos sociais, como um desvio padrão insuficiente para expor as escoriações profundas da alma humana e das indagações apagadas mas não menos angustiantes que ela continua fazendo à filosofia, e que contudo se firma como uma opção subalterna poderosa por revelar a insuficiência inexaurível da normatização da vida oficial. Não é à toa que a cena mais excitante de O Teatro de Sabbath, a que consegue motivar aquele adolescente curioso pelo livro proibido de ginecologia que por ventura ressurge no leitor, é justo a que Sabbath imagina a sua esposa alcoólatra de quase sessenta anos se masturbando na cama. A esposa a qual Sabbath não sente nada além de um asco suficiente para abandonar o relativo conforto do lar e se tornar um mendigo em Nova York. Outra cena lúbrica é a da já famosa nota de rodapé mais extensa da literatura, a reprodução ipsis litteris do diálogo telefônico entre um Mickey Sabbath jovem e vigoroso com uma aluna prestativa ao extremo, com invocações diretas a todos os fervores sexuais que sua ainda não destruída saúde tinha direito a ponto de ser a causa de sua futura ruína social. Pareceria pornografia consistente se Roth não deixasse claro que a ninfeta tem um ar de retardamento alienado e pesa bem mais que o exigido para certos padrões do gênero.

Outro mérito de Roth é ser completamente decantado da necessidade de excessos de tinta para pintar esse painel já carregado de excessos de outros níveis. Em mãos apenas talentosas, o romance ofereceria espaços atrativos para a ironia, a caricatura e a sátira de tal forma que o autor não poderia recusá-las. Um dos passatempos preferidos do Sabbath velho e artrítico é visitar o túmulo de sua amante Drenka Balich de madrugada, num cemitério deserto e afastado, e se masturbar tristemente diante o retângulo de terra onde está enterrada a mulher que mais amou na vida. Sempre que está enredado nessa tentativa de absolvição solitária, lhe acontece algo ainda mais inusitado: o filho de Drenka, o patrulheiro do condado que o odeia profundamente, surge por entre as sombras para agredi-lo. Uma cena tal como essa é um ímã inevitável para que um romancista empregue sua verve rabelaisiana a fim de tornar a coisa convincente, extirpando os apêndices incômodos da inverossimilhança que provocam descrédito no leitor. Mas Philip Roth não usa de nenhuma ironia ou astúcia humorista para descrever essas cenas: a impressão de absurdo vem ao leitor, mas de uma forma que causa uma identificação com a inerente propensão humana a se desvestir das aparências sociais e se entregar ao desamparo. Todo o repúdio que Mickey Sabbath provoca, um personagem de carne e osso dos mais reais da literatura, se anula pelo seu gritante desamparo.

O Teatro de Sabbath, assim como Complexo de Portnoy, é desbragadamente engraçado. É um presente de prazer estético tão recheado de inteligência e gênio que só as cenas hilariantes já justificariam sua leitura. Sabbath foi enxotado de casa pela mulher, que não agüenta mais as humilhações a que o velho libidinoso a obrigava a passar, e, sem casa, vagando pelas ruas de Nova York com as roupas em estado lastimável, de repente se vê caído nas graças de um amigo de universidade que, ao contrário de si, prosperou exemplarmente. Esse amigo o leva para seu gigantesco apartamento de frente ao Central Park, o alimenta, o convida a ficar o tempo necessário até que Sabbath rearranje sua vida. E as forças que determinam que Sabbath sempre seja ingrato a qualquer tipo de bondade que bons samaritanos bem intencionados lhe destinam, o fazem cair mais uma vez no seu incansável vício de promiscuidade. As tentativas de Sabbath para levar a mulher desse amigo para a cama, e as fantasias a que Sabbath se entrega no quarto da filha do casal (explorando as gavetas das calcinhas da menina que está universidade), são carregadas de um pedante suspense que se resolve num riso solto não excluso de culpa.

Outros fatores que tornam esse romance grandioso é a exuberância da escrita de Roth onde tudo se encaixa sem revelar o molde e a premeditação, numa naturalidade que confere ao leitor a certeza de estar em boas mãos, de que o autor não vai escorregar um milímetro sequer, nem nas cenas em que Sabbath recorda o irmão morto na guerra. E a inteligência de Sabbath, sua música interna selvagem que ecoa Shakespeare, sua argúcia que não se rende ao pensamento institucionalizado e o desmoraliza até nos altos escalões da filosofia e do academicismo por conhecê-lo tão bem. A erudição e a lucidez de Sabbath parecem brincar com o pensamento   recôndito de que tem algo de invejável ser um mendigo excessivamente culto, que opta pela dissolução por vontade própria e por um senso de rebelião que é o único digno e verdadeiro. Roth mais tarde escreveria uma trilogia de romances também com uma estatura tão assertiva, mas é com O Teatro de Sabbath que ele garantiu seu lugar entre os maiores escritores que a língua inglesa já produziu. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Música de livro


"Do hi-fi raramente usado da sala de visitas, veio o som de música para piano, um velho disco de Keith Jarrett, Facing You. A primeira música. Ela parou do lado de fora do quarto para ouvir. Fazia muito tempo que não ouvia a melodia hesitante e só revelada em parte. Tinha se esquecido de como aos poucos a melodia ganhava confiança e se tornava subitamente viva à medida que a mão esquerda mergulhava num boogie estranhamente modificado, cada vez mais potente, impossível de ser freado como uma locomotiva a vapor em aceleração. Só um músico com formação clássica, como Jarrett, seria capaz de fazer com que cada mão fosse tão independente da outra.
       Jack estava lhe enviando uma mensagem, pois se tratava de um dos três ou quatro álbuns que serviram de fundo musical no início do relacionamento deles." (A balada de Adam Henry, de Ian McEwan).

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

8 h



Não tem para ninguém. Amanhã, às oito horas, vai ser o nome deste senhor que será anunciado.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

A balada de Adam Henry, de Ian McEwan



A balada de Adam Henry é uma surpresa na bibliografia de Ian McEwan. Nada de novo, para seus leitores, nas primeiras páginas até a metade do livro: encontramos ali a mesma prosa excepcionalmente construída, inteligente, profunda e ligeira (é incrível como a leitura de McEwan sempre se faz, para mim, em questão de deliciosos instantes ligeiros); encontramos a mesma construção pormenorizada de atmosfera para que o autor lance o leitor no centro da trama pretendida; os mesmos personagens multifacetados e seus diálogos e reflexões que os tornam tão familiares e humanos. Daí, como os leitores de McEwan bem sabem, começa a etapa sintomática do que eu propriamente chamo de "o momento em que o fôlego de McEwan começa a esmorecer", e da metade para o final da maioria de seus livros a trama sofre um decrescendo de interesse e passa a evidenciar a urgência do escritor em apenas amarrar as pontas soltas do início e concluir todo o mecanismo de maneira bonitinha e previsível, e o romance padece de empobrecimentos que vão do uso de clichês, didatismos, explicações clínicas pedantes sobre a doença de um dos protagonistas da história, e por aí vai. Assim, quando cheguei à metade de Adam Henry, após ter vibrado com cenas excepcionais e situações de suspense de primeiríssima qualidade, me dei de cara com esse momento mcewaniano e me preparei para suportá-lo da melhor maneira possível, com aquela gratidão tão comum em mim por me resignar com a metade fracassada da obra diante o deleite estupendo que a primeira metade oferece. Da metade para o final se inicia uma cena de viagem da juíza Fiona Maye, a personagem principal, pelo interior da Inglaterra, em encontros judiciários itinerantes em antigas mansões elisabetanas. Bocejei e apressei a velocidade da leitura, com aquela impressão de que McEwan enchia linguiça de maneira bastante canastrã. E a surpresa está justamente aí: a diminuição do romance, no caso desta obra, não é ardil e nem engodo de um escritor que notoriamente perde o equilíbrio da estrutura de suas composições, mas um ato que corresponde ao controle pleno para a mensagem que ele tem para oferecer no final. Esse é um dos livros mais tocantes e verdadeiros de McEwan, e um de seus títulos mais genuínos. É o primeiro livro dele, entre tantos outros que já li, em que ele não usa do grotesco, do macabro, da abominação, da patologia mental para enfeixar o conjunto de suas páginas. Ternura sempre houve em McEwan, incontestavelmente um dos maiores escritores vivos, mas ela se sustenta em negativo através da escatologia criminal que é uma das assinaturas do inglês. Por isso, fica-se esperando neste seu mais recente romance o momento da estocada em que a normalidade cederá para o abrupto caos e a distorção do pesadelo. Fica-se esperando o desenlace cosmético que geralmente é um truque de empolgação de McEwan para suplantar sua incapacidade de ser deslumbrante até o último momento_ a sua maneira íntegra de pedir desculpas. E neste não se vê tal artifício. O final da obra nos traz uma consciência delicada sobre o que é o humanismo institucional dos tribunais, com seu frio distanciamento jurídico, sua impessoal salvação e sua assepsia do desamparo, e o que é o contato humano legítimo entre duas pessoas alquebradas que tornaria a vida realmente esplendorosa. Na figura de Fiona Maye, McEwan tece uma reflexão poderosa sobre o contato humano, usando símbolos sofisticados que não caem nem um segundo na gratuidade, desde a música (o livro mais cheio de referências musicais dele), a religião, até o direito (o título original em inglês é bastante eloquente, The Children Act). O último capítulo é absolutamente tocante. Um McEwan excepcional!

domingo, 4 de outubro de 2015

Nesta noite de domingo desterrada do infinito


Preparando-me para o vinho da noite e a audição deste que é um dos mais belos álbuns de rock progressivo, Darwin, do grande Banco del Mutuo Soccorso. O próprio nome da banda já é um poema. As letras deste álbum e o que o precede nessa séria, o Io sono nato libero, tem uma qualidade literária muito acima da média do que se vê no campo da indústria fonográfica (convido a que leem a letra belíssima da canção Canto nomade per un prigioniero politico, literalmente de arrepiar).

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A semana



Essa semana foi toda para acompanhar a Dani na capital em seus exames antes do parto. Pegamos o carro de manhã e fizemos uma agradabilíssima viagem nós três por três horas, indo no máximo a 100 km por hora e ouvindo uma seleção de álbuns nos pen drives. Choveu no caminho. Paramos em um restaurante de beira de estrada. A Dani e a Júlia pediram suas músicas preferidas do Phish e vieram cantando The line e Devotion to a dream em voz alta, a Júlia com seus improvisos de inglês infantil de cinco anos. Durante o Radiohead a Júlia começou a tombar a cabeça de sono em sua cadeirinha, mas na Björk ela reanimou novamente. A disposição de humor estava tão elevada que ao entrarmos na cidade nem mesmo o trânsito a abalou, mantido do lado de fora das janelas solidamente fechadas com o ar condicionado ligado. Chegamos à casa da minha mãe e a mesma harmonia de humor estava lá. Passamos a semana indo ao cardiologista e ao obstetra, fazendo ultrassonografia e outros exames que não sei o nome. Disseram que a Dani está ótima, que o parto será marcado provavelmente para antes do dia 15. À noite fui à Fnarc e fiquei lá por boas 3 horas. Comprei uma batelada de livros que não esperava comprar. Dormi num colchão na sala do apartamento da minha mãe, onde estão as plantas e uma peça artesanal de cerâmica que simula uma cachoeira por onde a água cai em 4 níveis. Ficava lendo até as três da manhã, ouvindo o som morfínico da água. Durante as tardes, em que nada havia para fazer, passava horas lendo. Meu respeito pelo meu leitor interno é tão grande que sempre me deixo levar por suas escolhas inusitadas e espontâneas. E como caiu bem a leitura dos livros que ele escolheu na Fnarc. Li Mo Yan com deleite, depois, em um dia e uma noite, li Uma rua de roma, do Patrick Modiano. E agora estou embrenhado na leitura múltipla dos outros livros comprados: Amor e exílio, de Isaac Bashevis Singer, e o novo do Ian McEwan. Também comprei uma edição de bolso de Heart of darkness que tem sido minha companhia nas salas de espera dos consultórios médicos. Mas o que tem feito meus olhos brilharem mesmo são os livros do Mo Yan e Modiano. Os dois tem duas coisas em comum no imediato mundo real: os dois ganharam o Nobel e os dois se declararam (no caso do Modiano) ou foram declarados (no caso do Mo Yan) como escolhas menores para o prêmio. Gostaria de simplificar as coisas dizendo que o que gosto neles é o fato de serem autores medianos, descomplicados, puros. Mas isso é cair em rótulos simplistas. Mas vou me deixar, assim mesmo, cair nesse conceito limitante. O que eu adorei nesses livros é justamente eles serem medianos. Não há arroubos metafísicos neles, não existem sentenças grandiosas, nenhuma erudição excessiva, nenhuma digressão ensaística. Os dois são despretensiosos de uma maneira desconcertante. O Modiano, por exemplo, que declarou sem a mínima comiseração ter ficado espantado com a escolha da academia sueca, começa seu livro sem subterfúgios algum, direto, com muitos diálogos e poucas descrições. Estou verdadeiramente apaixonado pelo Uma rua de roma. Ele tem 220 páginas mas eu as li em alta velocidade, fiquei tão absorvido pela história e pela delicadeza da linguagem que quando cheguei ao final foi que me liguei que o livro físico estava realmente acabando. Pretendo voltar na Fnarc e comprar mais uns três Modianos para preencher meus dias até a chegada do Eric. Fiquei fã mesmo do cara. Há muitas cenas ali de tirar o fôlego de tanta beleza. E Modiano as compõe aparentemente sem apego a virtuosismos, apenas faz seu papel em sua sala à meia luz em algum apartamento de Paris. Modiano é tão fluído que me fez pensar que alguém como Hemingway gastava muito suor para se descomplicar, enquanto Modiano é descomplicado por natureza. O livro trata da procura do narrador por sua identidade, perdida há oito anos por algum evento desconhecido que lhe provocou uma amnésia. Os diálogos entre o narrador e as várias pessoas indicadas por suas pistas são primorosos, e a avareza de descrições evoca no leitor cenários tão vívidos e misteriosos que lembram algo de Kafka ao mesmo tempo que algo de Agatha Christie e George Simenon. Que delícia nesse instante da vida ser regalado com esses escritores medianos. A literatura em sua função cartorial, regida por expedientes protocolares; homens que escrevem com a mesma necessidade de qualquer outro ostensivo escritor de se oporem contra a morte, mas que o fazem em um estágio mais silencioso, que parece humildade mas que é apenas a consciência imolestada de cumprirem seus papéis consigo mesmos. À noite de ontem reencontrei um antigo amigo dos tempos do colégio no bar Woodstock, e o sincronicismo foi tanto que quando nos vimos passava a Smoke on the water, que tanto adoramos. É com o espírito leve das leituras de Modiano e Mo Yan que agradeci pela singeleza dessas coisas.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Mudança, de Mo Yan



Mudança é um livro bem curto e tido como um dos romances mais fracos de Mo Yan. Já no prólogo o autor conta que o escreveu para suprir um pedido não cumprido feito por um editor indiano de publicar uma narrativa política sobre as mudanças ocorridas em trinta anos na China. Mo Yan admite sua incompetência para tal projeto, mas a obsessão de moldar alguma forma aproximativa da empreitada o faz escrever uma espécie de auto-biografia em que se pode ver a visão panorâmica nacional abortada através de sua jornada de aldeão expulso da escola na quinta série, passando pelos anos no exército revolucionário até chegar à sua consagração como escritor. Para quem procura diversão rápida e uma prosa cômica concisa, a obra não decepciona, sendo mesmo bastante pródiga nas primeiras páginas. Nestas, respira-se a infância de Mo Yan, compartilha-se com ele sua fragilidade diante um mundo dominado por um sistema cuja opressão é tão onipresente que já atingiu a suavidade tensa do acondicionamento, e deleita-se com a apresentação de personagens que aos poucos perdem seus estranhamentos étnicos e se tornam familiares. O leitor sente aquele gostinho bom de estar lendo um desses livros orientais que faz o tempo parar e as fronteiras da imaginação se expandir; se lembra dos bons russos e dos bons latino-americanos; vê as aldeias com um enlevo absorvente que o faz ter a impressão de conhecer o país através das palavras ali escritas. Mas há um grave problema, que só se acentua pelo desbaratino do autor ser um completo desconhecido ao leitor e de não se ter, por enquanto, mais nenhum livro de sua lavra traduzido em português. O leitor sente o desconforto de não entender plenamente o que um livrinho como esse, desarmadoramente singelo e leve, quer realmente dizer. O leitor sente a comichão de não estar apto a saber se Mo Yan é um completo tolo ou um mestre portador de uma sutileza tão delicada que pode se esboroar no toque das mãos. Essa é a questão: acreditar nas palavras de Mo Yan, ipsis litteris, e com isso reconhecer o que alguns críticos de outros blogs nacionais que também só leram esse livreto disseram de sua vergonhosa conivência à ditadura de seu país, ou aceitar a fagulha de iluminação retroativa das últimas palavras desse romance e cogitar que Mo Yan usou de um sarcasmo fino, destruidor, auto-punitivo, que é uma chave provocativa para se ler sua posição contra todo o atraso que relegou ele e seus personagens a uma miséria física e moral. 

Na versão apostando no entreguismo total de Mo Yan, Mudança é uma leitura que em seu acriticismo absoluto chega a dar náuseas. Para o jovem Mo Yan nada é passível da mais ínfima indignação: ele é expulso da escola por uma mal entendido ridículo com um professor, que por ser esse integrante do partido o faz cair no banimento à educação formal; suas esperanças de ascensão econômica estão tão vinculadas a uma astrologia inalcançável de se cair nas graças dos influentes do poder que a reação diante a vanidade de suas tentativas mais esforçadas é de alívio resignado pela fidelidade do fracasso; sua mulher o escolheu apenas porque ele tem os olhos menos repugnantes que o outro candidato; até sua maneira de aceitar o fato de ter se consagrado como escritor é uma maneira de se desculpar pelo erro dos outros terem visto equivocadamente valor nas coisas que escreve. Mo Yan parece se aprazer com sua humildade ostensiva de se apresentar em toda a sua mediocridade. É o escritor medíocre, que não contesta, que não se lança em arroubos narrativos, que vai direto no assunto e usa um vocabulário estrito, que se reserva com fé rigorosa a morar dentro da circunscrição de seus limites, que escreve essas pequenas coisas em um livrinho de 125 páginas que se lê em 3 horas rápidas e que se diz velho e de memória fraca. Até sua melancolia é inofensiva, conjugando sua profundidade à confissão de que aprendeu filosofia com sofreguidão para sobreviver dando aulas a alunos proletários. Diante essas evidências, é difícil ao leitor apostar que haja um fabulismo mais complexo por detrás das imagens por demais claras do autor. Essa leitura hipotética de Mo Yan é a prova mais eloquente daquilo que Pynchon disse que um autor não pode ser absolutamente entendível. E nessa primeira leitura, Mo Yan é o mais entendível dos escritores.

A segunda leitura dá uma eletricidade inusual ao romance. A última cena do livro dá a dica de que Mudança pode ser maior do que parece. Com tal cena, o leitor leva uma voltagem no cérebro e retroage a todas as outras peculiares do livro, dando a elas novo sentido. Com ela, o entreguismo de Mo Yan passa a ser uma astúcia para mentes antenadas. Mo Yan passa a ser um metafórico quase tão potente quanto Günter Grass. O livro gira em torno da imagem de um caminhão soviético tão velho que está para se tornar uma sucata, o Gaz 51 (cuja bela capa da Cosac é a reprodução de um desenho técnico do veículo), no qual o autor faz uma viagem de 3 mil quilômetros até Pequim para levar 40 cestas de maçãs e alho-poró para os representantes do partido. Na crença do autor e seus companheiros, há apenas dois caminhões destes em toda a China, um no vilarejo onde Mo Yan nasceu, e outro no posto militar onde passa dois anos de tédio. O caminhão está por detrás de todas as tramas paralelas da história, e é o mote de um sonho surrealista em que os dois caminhões se encontram, se cortejam e se copulam, dando origem a vários outros caminhãozinhos. Tudo em retrocesso mostra que Mo Yan e seu universo estão indissociados da corrupção, do atraso, do cabresto e da barbárie do estado absolutista chinês. O amigo subversivo da infância de Mo Yan, He Zhiwu _ que faz lembrar no início o jovem Mahlke, de Gato e rato_, só consegue se tornar um milionário através da corrupção e do mercado negro. E a cena final, envolvendo a incorruptível colega de infância do autor, Lu Wenli, faz o feixe simbólico que dá autenticidade a essa leitura. Até ler As rãs, um romance de quase 500 páginas, tido como um de seus títulos mais relevantes, recém lançado por aqui e encomendado por mim nesta madrugada, não poderei responder com segurança. Mo Yan será um Shostakovich, que odiava Stálin e vingou seus anos de submissão forçada ao stalinismo através da evocação cifrada em sua música de sua perpetuação diante o desaparecimento inexorável do ditador, ou será meramente um sujeito vil atolado na mais silenciosa subserviência, como foi Prokofiev?

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Apocalipsismos



Texto publicado há 4 anos. Original com comentários aqui. Já não me lembrava dele, e hoje na feira um amigo comentou que o havia lido. Charlles Campos volta de sua fama global para ser reconhecido em sua própria terra. Estudando aqui as formas de escapar à crucificação. Li-o novamente e o achei bem bom; confesso que não fiquei envergonhado, o que equivale a uma aprovação do gnomo que uma vez vivia na gaveta e agora deportou-se para a realidade virtual. Eu queria escrever um texto sobre Martin Shkreli, talvez o personagem real mais importante da semana. Não conhecem? Deem uma pesquisada na figura. Uma prova escarrada na cara dos estultos que pregam que o mercado regula-se a si mesmo.

No filme A Estrada, a evocação do fim parte de onde em Solaris, de Tarkovski, a ilusão de recomeço  surge na submersão do personagem principal na crença em que sua esposa não havia suicidado. Em Tarkovski, pode-se adotar essa catarse desesperada, que não necessita dispor de mais efeitos de convencimento porque o enredo acaba aí, não há mais filme e as cortinas se fecham sobre essa loucura apiedante. O astronauta que se enredou nos sonhos causados pelo planeta ectoplásmico Solaris pode passar toda a eternidade como sempre quis, sem as angústias filosóficas que o acometiam, sem os pesadelos de que a morta lhe aparecia com o rosto carregado de acusações de culpa, sem a realidade de que está anos-luz de qualquer geografia terrestre que lhe seja familiar: sua rendição a Solaris lhe garante em troca voltar à lembrança da tarde em que ele, sua mulher e seu filho se deitam no gramado de sua casa de campo, absorvidos na mais sólida felicidade. O que importa os desdobramentos de seu possível despertar desse sonho?, o que importa se o astronauta não fez outra coisa que ser derrotado uma segunda vez, depois que se desatou de sua resignação ao estoicismo e se lançou nos braços lisérgicos de Solaris?, o que importa se essa fantasia não é senão os momentos iniciais de sua morte? Para a platéia, esse último e definitivo instante não só justifica a vida do astronauta como é o ponto nodal onde se coincidem poderosamente o alívio diante o niilismo da condição da história e a redenção do astronauta, o seu arrebatamento da crueza da existência. Por detrás dessa síncope freudiana onde se desaloja o recalque, há uma compensação estreitamente ligada ao mérito do martírio cristão. O astronauta, que foi voluntário para deixar o planeta Terra, alcança seu momento sublime que o liberta da culpa, da perda, da ausência de sentido; e tanto é maior esse escape quando pensamos que ele não despediu-se em definitivo da Terra, mas das avenidas gigantescas e vazias, e dos silêncios urbanos planificados da União Soviética de Tarkóvski, do protótipo de emancipação social mal realizado que descambou num pesadelo insuportavelmente pesado. Se Tarkovski mostra cenários de escombros e ruínas em filmes como Stalker, em que um depósito de ferro velho se espraia ao longo da margem de um rio florestal, com o propósito de provocar a sensação de "descanso do capitalismo", em Solaris a cena final é o descanso ao comunismo, a rendição em admitir não mais acreditar que o ser humano possa abraçar a Grande Ideia. No filme À Espera de um Milagre, o indío cherokee no corredor da morte diz que o paraíso seria voltar e viver para sempre num momento de sua vida, quando se refugiou com uma moça numa cabana da montanha. Como todo ato de abnegação de superfície enganadora, o astronauta se sacrifica por um mentira egoísta, uma deportação do mundo real.

Já A Estrada é um negativo da última cena de Solaris mas que avança de forma corajosa para todo o longo discurso apocalíptico a que Tarkóvski alude. O pai e filho de um planeta Terra ominosamente destruído fazem parte dos sobreviventes da espécie humana que purgam o mais antieufemístico experimento filosófico: viver os derradeiros meses de absoluta carência em que sucumbirá a história. Não há alimentos, não há vegetação, não há animais. Existem apenas a peregrinação rumo a lugar nenhum, a paisagem cinzenta onipresente e o canibalismo, contra o qual o pai guarda um revólver com duas balas que deve ser usado contra eles mesmos caso sejam pegos pelos canibais. O pai ensina ao filho que deve colocar a ponta da arma de encontro o queixo e efetuar o disparo. Os conselhos que o pai dá ao filho ao longo do filme são todos dessa lava de sinceridade dura. Muito do desespero de sua mulher o contaminara depois que ela própria vencera suas tentativas de dissuasão e praticara o suicídio. Quando ela clamava para que a deixasse levar o filho com ela, ele, as sobrancelhas arqueadas, as feições maleabilizadas por um incognoscível heroísmo niilista, se dobrava para dentro de si mesmo, negando o pedido e sabendo que não poderia salvar a esposa. Seu filho, ele monologa enquanto atravessa um campo acinzentado por uma morte total e insubtraível, é a forma com que deus fala com ele, se alguma vez deus falara com ele. O impacto congelante do filme é justamente esse, entre todas as desgraças óbvias que são conhecidas dos filmes apocalípticos, a maior é a realidade explícita de que não há mais lugar para a mais inofensiva ilusão. O pai não tem o conforto de se afundar numa fantasia de retorno tarkovskiana. Não há mais a possibilidade desses artifícios de retornos plásticos, de analgésicos psicológicos para aliviar numa sobra de sonho a certeza do fim. Ser o último representante da espécie que detêm um vestígio de luz moral é um fardo sem propósito, algo de uma insuportável loucura. A Estrada seria um filme mais duro ainda de assistir se tivesse caído nas mãos de um Tarkovski moderno e independente que pudesse ter o benefício de olhar a substância do que sobrou das expectativas humanas a partir de um lugar lúcido na América. Quais cores ele teria usado para representar a destruição da paisagem, já que um de seus méritos maiores foi sempre prescindir dos efeitos especiais? Teria esse Tarkóvski usado em substituição à ausência de um técnica cinematográfica caríssima a mesma astúcia sublime que fez em Solaris para representar a solidão extrema de uma sociedade planificada futura, usando longos takes das ruas soviéticas? Ninguém como Tarkovski conseguia traduzir o vazio e o medo interior (ou o medo do vazio) nas filmagens puras da natureza, seja urbana ou os escombros urbanos despejados no campo.

Dos diretores americanos atuais, há uma dupla que detêm o mesmo poderoso talento de Tarkóvski em explorar a mentalidade de derrocada e de trânsito para lugar nenhum do homem moderno. Trata-se dos irmãos Coen, cujo mote sensitivo de seus filmes é o de carregar o espectador de uma sombria premonição que algumas vezes trafega pelo terreno de insinuações kafkianas. Seus estudos do contraste da vida simples com a promiscuidade multitudinária das grandes cidades usa de um moralismo vago mas suficientemente não deletério para a sua arte, no estilo tire suas próprias conclusões e desprovido de qualquer cinismo maniqueísta. O casal imune à doença de assassinatos banais de Fargo, no final do filme em que a policial interpretada por Frances McDormand retorna para o refúgio seguro do seu lar, é mostrado sentado diante a televisão, num laconismo carinhoso mas sem surpresas do amor estabelecido. Nos filmes dos irmãos Coen já não se espera alcançar o grande Outro, os personagens já possuem um gene plenamente adaptado vindo do trabalho de acomodação paulatina das gerações anteriores para se manterem num estado acomodativo inquestionável. Os vilões só querem para si_ só são biologicamente capazes de querer para si_ algum tipo de benefício oferecido pelo pobre horizonte restringido ao mínimo denominador comum da ausência do grande Outro: alguns milhares de dólares, alguma falcatrua que não envolve o apreço das cobiças gigantescas dos gângsters dos filmes noir. São desprovidos de emoções exautadas, tanto de amores furiosos ou ambições furiosas; entram em atribulações apenas pela propensão natural da espécie, mas não por uma convocação demoníaca. Os personagens que tem direito à felicidade morna da não participação são aqueles que, seguindo a máxima pascaliana, não saem de seus quartos para não promoverem o mal. São personagens que não vivem tempos interessantes, e, na norma moderna de um presente perpétuo, refestelam-se no restolho plastificado das grandes emoções, simulam serem cidadãos e seres humanos involuntariamente, reagindo à concepção secreta que trabalham no interior de seus genes, pois não sabem o que na verdade é um ser humano e um cidadão.

Não à toa que um dos maiores filmes dos irmãos Coen veio do casamento com a obra de um escritor sintomático como Cormac McCarthy, o autor do romance que gerou a adaptação de A Estrada. Em Onde os Fracos Não Tem Vez, a adaptação da obra de McCarthy feita pelos irmãos Coen, vemos uma série de personagens automotivos, que são impulsionados a agirem por razão nenhuma. O assassino interpretado por Javier Bardem vai deixando uma fileira de corpos por onde passa, usando um compressor de ar e uma espingarda com silenciador. No meio do filme, um policial oferece a análise do assassino: ele não mata por dinheiro, mas por ser uma máquina inexplicável e compulsiva. O assassino detêm, contudo, um código moral, que usa em duas de suas vítimas para avaliar se o destino consubstanciado no cara ou coroa de uma moeda vai autorizar que elas sejam mortas ou poupadas. Não há uma metafísica, uma transcendência, um universo mental exra-orbitante, ou qualquer espiritualidade no mundo bastante aproximado do real criado pelos irmãos Coen. É um mundo intersticial que subjaz no deserto das grandes ideias, das grandes aspirações, um mundo apaticamente desumorado e regido por uma funcionalidade cega e sem eficiência_ porque não procura eficiência, a eficiência não tem sentido. São comédias criadas para não terem graça, e tragédias feitas para não obterem nenhum impacto trágico. Aí a genialidade dos irmãos Coen: lidar com as emoções aplainadas, o vazio de sentido. Daí que o impacto vem como a inesperada e ensurdecedora explosão da barreira de som quebrada, quando os irmãos Coen sorrateiramente nos manda por cima a moral sintomática, a cobrança subliminar por reação. Não há um grande Outro, ou Ele só surge na inversão indestituível da morte, como em Um Homem Sério, na magnífica cena final, uma das maiores do cinema, em que tudo feito pelo homem do título para escapar de um destino cotidiano é engolido por uma outra solução da qual ele não pode se safar. Ou as cenas gêmeas de Onde os Fracos Não Tem Vez, em que o assassino e o cowboy feridos, cada um em um momento e lugar diferente, perguntam a um adolescente (a nova geração) quanto querem por sua camisa, para que possam esconder o sangue das feridas. Ao cowboy, o adolescente junto com seu grupo, estipulam um preço alto, a visão do sofrimento não motiva qualquer outra reação humanitária ou de pena diante a alteridade. Diante o assassino, um dos adolescentes lhe entrega a camisa e diz que não precisa ser pago, que a camisa lhe será dada  de graça; o assassino não aceita a gentileza, e impõe que o adolescente receba um maço de dinheiro pela camisa. Quando foge, o adolescente sem a camisa e seu colega começam a discutir pelo dinheiro.

Slavoj Zizek diz que a humanidade nesses tempos determinantes em que vigoram diferentes correntes de apocalipsismos, tanto o ecológico, o biopolítico e o do caminho para a total desregulamentação dos mercados, deveria assumir a tentativa de solução de que o grande Outro não existe, e trabalhar na recuperação a partir daí. Aceitar que o fim não está confortavelmente próximo, mas é uma realidade inevitável em franca velocidade_ e trabalhar do futuro para o passado para mudar essa nossa triste condição. Não cogitarmos intimamente que haverá alguma força exterior que nos salvará, que agirá por nós. Não o descrédito existencialista, não um recurso vaidoso sartreano de empolarmos de filosofia niilista e reivindicarmos a supremacia da liberdade humana. Zizek propõe algo de extrema chatice funcional e desprovida de qualquer instigante exercício imagético: a restauração da humanidade feita por nós mesmos, através dos únicos canais utilizáveis que se fazem efetivos, a política, a economia, o controle reducionista direto. Nada de abstrações e lamentos sofismáveis. E cita o que foi dito por um amigo, que nos tempos atuais os poetas são mais importantes que os filósofos e analistas políticos, pois eles oferecem a alucinação que está além da teoria assepsiada pelo filtro de equilíbrio acadêmico. Nisso, a mensagem de Solaris, desatrela-se do propósito político circunscrito à crítica da sociedade planificada da União Soviética e amplia-se para toda a humanidade. Filmes como A Estrada e os filmes dos irmãos Coen já não falam da condição caótica dos Estados Unidos ou de uma nação e um povo específico. Como diz Zizek, o conceito de Marx para o proletariado há muito já se subtraiu dos funcionários escravizados das fábricas alemães e inglesas, e abarca agora todos nós. Todo nós compomos a nova proletarização em nossos redutos grupais onde, aos poucos, a ausência do Estado nos condiciona a uma marginalização onde são empregadas regras internas próprias. A favela vai se tornando o mundo.