domingo, 25 de maio de 2014

A morte e a pompa_ Louis-Ferdinand Céline: "De castelo em castelo"

Um texto excepcional de Milan Kundera sobre Céline, retirado do ótimo Um encontro, um volume de ensaios de Kundera lançado pela Companhia das Letras:



"No romance De castelo em castelo, a história de uma cadela; ela vem das terras glaciais da Dinamarca, onde estava habituada a longas escapadas pelas florestas. Quando chega à França com Céline, acabam-se as escapadas. Depois, um dia, o câncer.

[...] tentei deitá-la em cima da palha... logo após o amanhecer... não queria que eu a deitasse... não quis... queria ficar em outro lugar... no lado mais frio da casa e em cima das pedras... deitou-se calmamente... começaram os roncos... era o fim... haviam me dito, eu não acreditava... mas era verdade, estava deitada no sentido da recordação, de onde viera, do Norte, da Dinamarca, o focinho ao norte, virado para o norte... cadela a seu modo tão fiel, fiel aos bosques de suas escapadas, Korsör, lá no alto... fiel também à vida atroz... os bosques de Meudon não lhe diziam nada... morreu após dois... três pequenos estertores... ah, discretíssimos... sem um só lamento... por assim dizer... numa pose de fato muito bonita, como em pleno ímpeto, em fuga... mas de lado, prostrada, acabada... o focinho para as suas florestas das fugas, lá longe de onde vinha, onde sofrera... só Deus sabe!

Ah, vi muitas agonias... aqui... ali... por todo lado... mas nem de longe tão belas, discretas... fiéis... o que estraga a agonia dos homens é a pompa... o homem afinal está sempre no palco... até o mais simples [...].

"O que estraga a agonia dos homens é a pompa." Que frase! E: "o homem afinal está sempre no palco"... Quem não se lembra da comédia macabra das célebres "últimas palavras" pronunciadas no leito de morte? É assim: mesmo agonizando, o homem está sempre no palco. E mesmo "o mais simples", o menos exibicionista, pois não é sempre verdade que o próprio homem se coloca em cena. Se ele mesmo não se coloca, nós o colocamos. É seu destino de homem.

E a "pompa"! A morte sempre vivida como alguma coisa de heroico, como o final de uma peça, como a conclusão de um combate. Leio num jornal: uma cidade, soltam-se milhões de balões vermelhos em homenagem aos doentes e aos mortos de aids! Paro neste "em homenagem". Em memória, como lembrança, em sinal de tristeza e de compaixão, sim, eu compreenderia. Mas é assim, e Céline sabia disto: "o que estraga a agonia dos homens é a pompa".

Muitos dos grandes escritores da geração de Céline conheceram como ele a experiência da morte, da guerra, do terror, dos suplícios, do exílio. Mas viveram essas terríveis experiências do outro lado da fronteira: do lado dos justos, dos futuros vitoriosos ou das vítimas aureoladas por terem suportado uma injustiça, em resumo, do lado da glória. A pompa, essa autossatisfação que quer se exibir, estava tão naturalmente presente em todo o seu comportamento que eles não podiam vê-lo ou julgá-lo. Mas Céline ficou durante vinte anos entre os condenados e os desprezados, no lixo da história, culpado entre culpados. Todos em volta dele foram reduzidos ao silêncio; ele foi o único a dar uma voz a esta experiência excepcional: a experiência de uma vida cuja pompa foi inteiramente confiscada.

Essa experiência permitiu que ele visse a vaidade não como um vício, mas como uma qualidade consubstancial ao homem, que não o deixava nunca, nem mesmo no momento da agonia; e, sobre o fundo enraizado dessa pompa humana, permitiu que ele visse a beleza sublime da morte de uma cadela."

Louis-Ferdinand Céline

11 comentários:

  1. Charlles,
    não desejo criar aqui nenhuma nova celeuma (já de tão velha!), mas acredito que o texto, a seguir, de Luiz Nazario, talvez mereça uma reflexão.

    http://escritorluiznazario.wordpress.com/2010/11/22/celine-e-seus-adoradores/

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    1. Charlles, alterei o texto de Céline (as alterações estão entre aspas).
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      [...] tentei deitá-la em cima dos “trapos imundos”... logo após o amanhecer... não queria que eu a deitasse... não quis... queria ficar em outro lugar... no lado mais frio “do cárcere” e em cima” do cimento...” deitou-se calmamente... começaram “os angustiosos suspiros” ... era o fim... haviam me dito, eu não acreditava... mas era verdade, estava deitada no sentido da recordação, de onde viera, do Norte, “da Holanda”, o “rosto” ao norte, virado para o norte... “menina” a seu modo tão fiel, fiel “às ruas” de suas escapadas, “Amsterdã”, lá no alto... fiel também à vida atroz... “aquelas ruas” não lhe diziam “mais” nada... morreu após dois... três pequenos estertores... ah, discretíssimos... sem um só lamento... por assim dizer... numa pose de fato muito bonita, como em pleno ímpeto, em fuga... mas, “Anne Frank”, de lado, prostrada, acabada... o “rosto” para as suas “estrelas” das fugas, lá longe de onde vinha, onde sofrera... só Deus sabe! “E agora aqui morta, em Bergen-Belsen…
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      Ah, vi muitas agonias... aqui... ali... por todo lado... mas nem de longe tão belas, discretas... fiéis... o que estraga a agonia dos homens é a pompa... o homem afinal está sempre no palco... até o mais simples [...].

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    2. Ramiro, fui lá no texto do link. Que bom quando o autor já se mostra desde as primeiras frases:

      "Há escritores que não mereciam ser lidos. Entre eles, um dos mais lidos, em todo o mundo, é Céline."

      Tendo lido apenas até aí, me poupou um valioso tempo.

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    3. Sua transliteração é interessante, mas a premissa de que Céline foi um abominável antissemita acompanha de forma inevitável a impressão dos leitores que gostam dele, tornando a sua referência sem efeito nenhum além do mero clichê. Gostar dele_ ele é um dos meus autores mais queridos_, não quer dizer de modo algum concordar com ele, ou ter desejado conhecê-lo pessoalmente ou falar com ele. O processo da leitura, como você sabe, envolve uma complexidade e sutileza felizmente muito maior que isso. Tanto é que a grande parte dos escritores de origem judaica amam o cara, entre eles, os mais ardorosos são Bellow e Roth. Bellow, na biografia que escrever sobre Allan Bloom, chega a rasgar elogios para os abomináveis panfletos que Céline escreveu. E outro autor, Coetzee, escreveu em ensaio esclarecedor ressaltando o quanto a mãe de Céline e o Céline criança penaram nas mãos de desalmados agiotas judeus. E o texto do Kundera aí não eufemiza nada o autor, o colocando do lado dos perdedores, fracassados e desprezíveis. Isso que torna Céline tão importante: ele era verdadeiro, não importa para o bem ou para o mal (geralmente a verdade só tem uma potência arrebatadora quando é para o mal).

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    4. Charlles,
      no texto de Nazario há uma informação que desconhecia: Céline, além de escritor, era médico e parece que respeitado; contudo, à época, ele acompanhou e/ou teve acesso, de perto às experiências ditas médicas, que os tais mencionados faziam em campos de concentração com os prisioneiros judeus… Tal informação é estarrecedora…

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    5. Desconheço isso. Céline foi um colaboracionista filho da puta mesmo. Mas ter partido da teoria para a prática nos campos de concentração é algo do qual nunca li. Claro que pode ser ignorância minha. O que sei é que ele exerceu a medicina entre os mais pobres, antes e no período do pós-guerra, de modo que se aproxima muito do altruísmo. Mas é o que eu disse: para lê-lo, sua santidade não importa uma vírgula. Ele é o próprio narrador de sua condição humana, com todos os seus podres e sua doença. No começo de De castelo em castelo ele fala sem papas na língua sobre isso: diz se tivesse aceito o convite da URSS para morar lá, quando era muito famoso e querido, teria se tornado um herói mundial, mesmo os crimes da URSS tendo sido maiores em potencial e número que os dos nazistas_ ele cita Sartre, que era, segundo seu parecer, mais pervertido do que ele e mais perverso, e defendia assassinos mais nefastos, e ele era aclamado, lhe ofereceram o Nobel. Céline faz pensar: quem de nós não é um monstro? e todas essas questões espinhosas_ veja o que Israel apronta hoje em dia. Veja que gente como Hannah Arendt exercia uma crítica acirrada contra a institucionalização da vitimização judaica, etc, etc. Debate vai muito longe....

      Esse Nazario não é fonte nem um pouco confiável. Um texto raso e profundamente tendencioso, sem valor algum. Texto equivalente ao dos evangélicos fanáticos sobre os símbolos diabólicos da maçonaria.

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    6. CÃES GATOS & CIA
      by ramiro conceição
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      O verdadeiro carnífice do amor,
      sem dúvida, é o sentimentalismo…
      Mas, cuidado!
      Não é aquele
      piegas por ser
      burro demasiado burro…
      Mas aquele outro erudito, mas…vil,
      que é adquirido à vista ou a crédito,
      que está em exposição no mercado.
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      Estou a tratar daquela deformidade
      degenerativa que, em poucas palavras,
      é a causa do espetáculo trágico
      onde Cães Gatos & Cia
      são tratados por semelhantes aos seres
      humanos… com rabos, latidos e miados.
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      Aí late,
      lateja
      e mia o fascismo
      de todas as cores,
      odores e bolores.
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      PS: Charles, escrevi agorinha, faz pouco...

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    7. Gostei do poema. Lembro, Ramiro, que à época em que foi lançado De castelo em castelo no Brasil, várias críticas salientaram esse excerto sobre a cadela como a única parte humana da obra; a única parte em que se podia ver a piedade do autor trabalhando ainda que em caráter obscuro em prol da vida_ mesmo que de um cão. Céline tem que ser lido ao reverso. A literatura é pródiga em nos oferecer isso: de forma incomensurável, mesmo um demônio se faz passível de amor.

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    8. "A literatura é pródiga em nos oferecer isso: de forma incomensurável, mesmo um demônio se faz passível de amor."
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      Ah, sim, amado Charlles, isso parece ser uma verdade...

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  2. A obra de Céline demonstra nitidamente que é possível ser um criminoso e um gênio. Que o crime não faz de ninguém um gênio da literatura. Que o homem pode ter muitos lados, altos e baixos etc. É fascinante.

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