sábado, 30 de outubro de 2010

Júlia



completando um mês na segunda-feira





o olhar fatal de Audrey Hepburn




                                                                       azul e branco

Aos amigos do blog, minhas explicações de por que não acho mais tempo para escrever e nem para fazer mais nada na vida, a não ser ruminar um torpor profundo e constante da falta de sono. As fotos estão mal definidas por terem sido tiradas do orkut da Dani, logo substituo-as pelas originais. Até o Eric compreendeu a barra pesada e tá cooperando. Abraços a todos!

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Someone's knockin' at the door/ Somebody's ringin' the bell

Thomas Bernhard




Se não tivéssemos nossa arte do exagero, dissera a Gambetti, estaríamos condenados a uma vida pavorosamente tediosa, a uma existência indigna de ser vivida. E eu desenvolvi minha arte do exagero a um nível inacreditável, dissera a Gambetti. Para compreendermos algo, temos de exagerar, dissera-lhe, só o exagero torna as coisas claras, mesmo o perigo de sermos tidos como loucos não nos incomoda mais numa certa idade. Não há nada melhor que numa certa idade ser declarado louco. A maior felicidade que conheço, dissera a Gambetti, é aquela do velho louco, que pode entregar-se à sua loucura com perfeita independência. Se tivermos oportunidade, devemos nos proclamar loucos no mais tardar aos quarenta e levarmos nossa loucura a extremos. A loucura é que nos faz felizes, dissera a Gambetti.
                                              (Extinção, Companhia das Letras, tradução de José Marcos Mariani de Macedo, p.96)

                                                                         *  *  *

A cada novo dia, lá estão sempre e apenas os mesmos seres humanos, com todas as suas fraquezas, com sua sujeira física e espiritual. Dá no mesmo desespera-se diante a britadeira ou a máquina de escrever. São as teorias que mutilam o que, afinal, está tão claro; as filosofias e as ciências, com seus conhecimentos inúteis, é que se interpõem no caminho da clareza. Já percorremos quase todos os caminhos, o que está por vir não há de surpreender, porque todas as possibilidades já foram consideradas. Quem tantas vezes já errou, irritou, perturbou, destruiu, aniquilou, se atormentou, estudou, se acabou, quase se matou, se perdeu, se envergonhou e não se avergonhou vai, no futuro, continuar se perdendo, errando muito, irritando, perturbando, destruindo, aniquilando, se atormentando, estudando, se acabando, quase se matando e assim por diante, até o fim. Mas, em última instância, tanto faz. As cartas vão sendo abertas, pouco a pouco. A idéia era seguir o rastro da existência, da própria e a dos outros. Nós nos reconhecemos em cada ser humano, seja ele quem for, e estamos condenados a ser cada um deles enquanto existirmos. Somos a um só tempo todas essas existências e todos esses seres existentes, em busca de nós mesmos, mas não nos encontramos, por mais que nos esforcemos. Sonhamos com sinceridade e clareza, mas não passou de um sonho. Desistimos e recomeçamos muitas vezes, e ainda vamos desistir e recomeçar muitas outras. Mas tanto faz. O homem de Scherzhauserfeld com sua britadeira deu-me a palavra-chave: tanto faz. É a essência da natureza que tanto faça. Tchau e tanto faz, sigo ouvindo suas palavras, embora essas palavras dele sejam as minhas também, embora eu próprio tenha dito tantas vezes tchau, tanto faz. O fato, porém, é que elas precisavam ser ditas. E eu já as havia esquecido. Pela vida toda, somos condenados a uma vida por um ou mais crimes _ quem sabe? _  que não cometemos ou que voltamos a cometer por aqueles que virão depois de nós. Não convocamos a nós mesmos para estar aqui: de repente, estávamos e, de pronto, a responsabilidade fez-se nossa. Tornamo-nos capazes de resistir, nada mais pode nos derrubar, já não nos agarramos à vida, mas tampouco a entregamos a preço de banana _ era o que eu queria dizer, mas não disse. Às vezes, erguemos a cabeça, acreditamos precisar dizer a verdade ou a aparente verdade, mas tornamos a baixá-la. Isso é tudo.
                             ( Origem, Companhia das Letras, tradução de Sérgio Tellaroli, p.316-7)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Algo que Achei Tocante Demais e, por Agora, Não Tenho Condições de Responder

Hoje recebi esse e-mail e comentário do Luís Augusto Farinatti. Não dá para dizer o quanto essas palavras me sensibilizaram. Peço ao Farinatti que me permita colocar seu texto como post. Pelo muito já que o conheço (incrível, pois não o conheço pessoalmente!), sei que a exposição de algo tão pessoal e tão íntimo não o ofenderia. Ainda mais que o que escreveu é tão precioso que não posso deixar relegado à caixa de comentários, pelo risco de não ser lido pelos eventuais leitores desse blog. Não sei o que te dizer, cara, por agora. E é melhor que eu não diga nada agora. Segue as palavras do Farinatti.


Charlles

Acho que nunca te contei a história inteira. Se já contei, me perdoa. De qualquer modo, vai agora. Desculpe a confissão, mas teu post me dá essa liberdade.

Nos últimos anos, tenho desenvolvido pendores para o sombrio. Vinha ficando cada vez mais pessimista. É possível que tudo tenha piorado em 2008. Meu pai sofria do Mal de Parkinson desde os 25 anos de idade. Isso não o impediu de ser um pai muito atuante na minha vida. Além disso, trabalhava, dirigia, contava piadas e andava de bicicleta. Porém, nos últimos anos, foi ficando realmente alheio, eu o sentia navegando para longe, por detrás dos olhos ausentes. No último dia do ano da tristeza de 2007 caiu inconsciente, foi para o hospital e lá ficou, em sofrimento, até morrer em outubro de 2008. Em mim, o efeito da sua lenta agonia foi devastador. Creio que ainda não me recuperei completamente.

Enquanto isso, eu e a Nikelen tentávamos engravidar, sem sucesso. Pesadelo freudiano: meu pai não conseguia morrer e eu não conseguia ser pai. Por uma dessas estranhas simetrias, fiquei sabendo que ela estava grávida uma semana antes de meu pai falecer. Foi uma semana catártica. Dois meses depois, passei no concurso para a universidade pública em que trabalho agora. Era janeiro e fui passar as férias à beira mar, em Santa Catarina, com minha mulher grávida. Foi ali, com os pés molhados na orla da praia, que decidi deixar o pessimismo que havia tomado conta de mim. As coisas estavam dando certo. Percebi que uma gravidez poderia ser um verdadeiro trem fantasma para um sujeito assustado. Decidi, então, que seria extremamente otimista durante todo o processo. Era o melhor para mim, para ela e para o Miguel, que eu já tinha visto no ultrassom e com quem falava todos os dias na barriga da mãe, como tu com a Julia.  

Cumpri minha decisão com abnegada disciplina. Era fácil, a gravidez ia muito bem, o pré-natal indicava mar calmo e velas a todo vendo. Era fim de março e eu estava em uma reunião quando vieram me chamar à porta. Disseram que eu telefonasse imediatamente para casa. Liguei, a Nika estava chorando. Sentia muita dor. Corri até em casa e fomos ao médico. Contrações, ele disse. Era muito cedo, apenas 6 meses e meio de gestação. Porém, na maioria dos casos, isso se resolve com remédios e repouso. Três dias e a dor só aumentava. Fomos para o hospital para que a Nika fizesse a medicação na veia. Uma semana no hospital e as dores não passavam. Certa manhã, ela teve febre alta. Chamaram-me na aula. Quando cheguei, o obstetra estava ao lado dela, acompanhado de um cirurgião e de um infectologista. Disseram-me que ela estava com uma obstrução intestinal. Era necessário operar, com anestesia geral, e tirar a criança.

Por algum motivo que ainda não percebo bem, talvez pelo choque, entendi que havia risco para o Miguel, mas não para a Nika. Associei a cirurgia dela à extração de um apêndice ou coisa que o valha. Fui até a porta do bloco cirúrgico com ela. Falei que o médico me garantira que tudo iria ficar bem com os dois. Cerca de meia-hora depois, me chamaram no elevador: a pediatra trazia o Miguel com uma enfermeira e um tubo de oxigênio. Fiquei catatônico, só percebi que ele tinha a boca da Nika. Antes que eu desse por mim, a porta do elevador se abriu e eles entraram na CTI Neonatal, me deixando do lado de fora. Um século depois, a Dra. R. saiu de lá e me desfiou todas possibilidades tétricas, do risco de vida, passando por danos os mais diversos até a possibilidade de uma saúde perfeita. A essa altura, meu negativismo voltara e já não conseguia escutar a parte das boas perspectivas.
Três horas depois, eu estava no pátio do hospital quando vieram me chamar porque o médico que havia feito a cirurgia da Nika queria falar-me. O risco de vida é grande, ele disse. Houve perfuração no intestino e septicemia. Risco de seqüelas também. Fui para casa e eles ficaram um em cada CTI.


Os meses seguintes foram duríssimos. Escrevi assim a um amigo:


Há processos indescritíveis acontecendo em cada um de nós três neste momento. Eu sigo, tentando dar a mão para eles, me equilibrar, ajudá-los a encontrar seus equilíbrios para dançar com graça no caos.
O estado clínico da Nikelen é muito bom, mas a recuperação é lenta. Miguel vai vencendo dia a dia as etapas. Eu vou lá com um e com outro. Dois andares, três corredores, e tento juntar os fios para eles.
Tudo agora é tempo. Dentro dele: paciência, amor, esperança e força para vencer o medo e a frustração. Acho que aquelas virtudes são muito mais fortes que esses monstros. Vamos indo bem.
Como eu disse: tudo agora é tempo. No meu caso, o tempo é perigoso, por causa da angústia. Mas combato!
No caso deles, o tempo é a cura. Assim, posso dizer que o tempo, agora, é nosso amigo.
Teu carinho chega aqui alto e claro, cálido e forte.
Segue enviando.
Precisamos dele.


O final da história é feliz. A Nika teve uma recuperação que assombrou os médicos. Depois de mais duas cirurgias, amamentou o Miguel, voltou a trabalhar em quatro meses. Hoje é mãe do Miguel, dá aulas, está escrevendo um livro e pode engravidar de novo. O Miguel, que nascera com 1,5 Kg, ficou 50 dias na CTI Neo, e teve uma infecção hospitalar no período. Hoje, é um menino de saúde perfeita, com 1 ano e meio, que come como um viking e é tarado por carros “Papai Brum, Brum!”.

Eu sei lá o que pensar disso tudo, Charlles. Vou aproveitando o sorriso dos meus amores.

Depois de ler teu texto, sinto-me teu irmão em armas. Teu irmão no que há de belo, trágico e cômico na condição humana.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Abrir Mundos

Desde que resolvi escrever esse blog, há coisa de dois meses, o fiz pela obrigação de ocupar a minha mente com algo que oferecesse um exercício contínuo de concentração. Com seis meses de gestação, descobrimos que minha mulher sofria de uma anomalia cardíaca chamada de estenose da válvula mitral. Minha mulher, a Dani, descobriu isso da pior maneira possível, num ataque repentino que chegou bem próximo a um infarte vindo quando ela estava de frente a seus alunos colegiais, dando aula. Me ligaram no meu serviço dizendo que ela estava internada no pronto socorro, e eu saí desesperado a ponto de ser dominado apenas por movimentos sinápticos que não me deixaram a lembrança de como atravessei a cidade e cheguei até o quarto do hospital onde ela estava internada. Para socorre-la, os médicos aplicaram três injeções de voltaren e potentes relaxadores musculares que a deixaram desacordada por três horas. Quando se acompanha a gestação de um filho, o que mais assusta os pais é a aproximação mínima de qualquer medicamento do bebê que está dentro da barriga, e as três injeções não eram nenhum bom sinal. Mas isso foi o de menos dali para frente. Diante médicos embasbacados, que nos olhavam como se fôssemos protótipos fugidos de uma experiência científica _ algo como os alienígenas da Área 51_ , impossibilitados de acreditarem como a Dani não havia sentido nada esse tempo todo; fomos informados que tal doença, que acomete as gestantes em decorrência de uma febre reumática contraída na infância, diminuía em muito as chances de que a gravidez pudesse chegar ao término com segurança. Ou seja: segundo a legislação e a ordem de prioridades médicas, a gestação deveria ser interrompida para poupar a vida da gestante. Havia um grau de variância que oferecia uma possibilidade pequena de otimismo, e os médicos iriam testá-la na Dani à custa de medicação à base de um forte diurético e da Digoxina, um controlador de arritmia cardíaca.

Tudo, à partir dessa data, virou um cenário de um lento filme de terror. Minha eventual natureza escapista foi posta por terra, e não havia como eu tentar alguma sensação de eufemização da realidade. Durante muitos anos tive o privilégio de não ser interessante diante os olhos da tragédia, as mortes e as doenças aconteciam com os outros e eu, como um menino Mogli para quem as degenerescências casuais da civilidade não chegavam ao meu desapego selvagem, vivia incólume como simples observador das desgraças alheias. E, de repente, a tragédia me descobrira, como um urso que volta pela janela para uma última averiguação e descobre a criança que já dormia no armário, certa de que seu refúgio havia enganado o faro do predador. Não só perderia minha filha, se a gravidez fosse insistida, como minha esposa também sucumbiria. Era algo de uma crueza tão categórica que compensava toda a distração que a providência havia tido comigo, com requintes de vingança.

Todos os médicos que consultávamos faziam seus papéis expressivos nesse drama. A radiologista negou a comunicar qualquer parecer que não fosse para nosso cardiologista. Uma cardiologista foi taxativa de que a Dani não aguentaria o parto. Quando fui na junta médica do ministério que rege meu trabalho, temeroso se os médicos me dariam uma semana de licença para acompanhar o tratamento dela, a médica me deu logo um mês inteiro de folga, com direito a mais um mês de prorrogação, quando leu o laudo do problema da Dani. Com os olhos esbugalhados, me perguntou como estava o bebê, com um tom de voz pressagiador que me fez sair de lá com os ombros pesados.

Por recomendação de uma tia minha, passamos a ser tratados por um cardiologista renomado, o dr. P., e uma obstetra de primeira, a dra. J. . O dr. P. é um amor de pessoa. É um médico cristão, com fartos cabelos que lhe caem numa mecha na testa que lhe dá uma aparência dúbia de amante latino e frágil homem de estudos. Ele tem uma presença espiritual realmente muito perceptiva, o tipo de pessoa que desperta o desejo de ficar em sua companhia por horas. Foi de uma cordialidade e atenção que serviu a colocar um pouco de luz sobre esse negror todo. Um dia, durante a consulta, ele disse que rezava todos os dias por nós, e que sua igreja estava fazendo uma campanha de oração. Vinda de qualquer outro médico, uma confissão desse porte seria desmotivadora, mas dele passava a impressão de que certas forças estavam aptas a interceder por nós, para que tudo desse certo, para que nascesse a Júlia e sobrevivesse a Dani.

A dra. J, por outro lado, me desagradou desde o início. Seu modo de falar,sua aparência, seu sorriso, sua determinação em ter que dizer a verdade sem voltejos para o paciente, me indispôs por completo com ela. Eu tinha que me conter e repetir o mesmo sorriso classe média alta que vive num universo onde tudo dá certo, meio Turma da Xuxa e meio professora voluntária para a sessão de leituras no orfanato, quando me sentava diante sua mesa. Me parecia que sua realidade perfeita não alcançava os substratos onde eu estava, prestes a ter que fazer uma escolha entre a vida de duas pessoas que eu amava e daria a minha vida por elas, se pudesse. Ela dizia, com uma doçura inapropriada, como se falasse da quantidade de açúcar de confeiteiro que deveria ser aspergido sobre a massa, que haviam chances de nosso bebê nascer com problemas neuronais, que a Dani poderia ter uma trombose no parto que incapacitaria algumas de suas faculdades motoras. Que a Dani poderia não aguentar ao fluxo de sangue que passaria pelo coração, após a cesariana. Que teríamos que abortar a criança, se os remédios não surtissem efeito. Quando eu passava a mão pela barriga da Dani, e sentia os movimentos que vinham lá de dentro, cada vez mais espertos e mais fortes, passei por uma convergência de sentimentos que não desejaria ao meu pior inimigo. Saber que as palavras ternas que eu falava se dirigiam para um serzinho que estava ameaçado de não nascer, é, decididamente, a pior coisa que já passei.

Na noite dessa última quinta- feira, pois, ninguém dormiu. Os medicamentos haviam surtido efeito, e o parto seria às sete da manhã de sexta, mas ainda não se demovera a ameaça de que a Dani não suportasse o excesso de sangue da cesariana. Eu não pude aguentar. Saí da maternidade assim que a Dani dera entrada na sala de cirurgia, e caminhei uns dez quilometros a esmo. Deixei passar duas horas, com o celular desligado para que ninguém da família que estava aguardando no hospital me localizasse. Quando voltava, um carro me parou numa esquina e eu vi o rosto sorridente da dra. J. no banco do motorista. "Que pai fujão!", ela me disse, com um sorriso de plenitude que, pelo que conhecia dela, poderia dizer qualquer coisa. "Vai lá papai, sua filha nasceu e ela é linda. E a Dani está ótima". Não me contive. Aquelas palavras, saídas da boca da pessoa que, inconscientemente e como uma válvula de escape, eu havia eleito como meu algoz, retirava três meses de um imenso peso sobre mim. Ainda morro de vergonha de ostentar minha fraqueza, mas pelo percurso até o hospital era-me impossível segurar o choro. As pessoas que passavam por mim nem me davam muita bola, era um setor hospitalar e lágrimas não deveria ser o material mais raro a se ver pelas redondezas.

A Júlia estava no berçário, calma, sonolenta. A dra. J. a retirou quatro minutos depois que a anestesia geral fizera efeito na Dani, para que o efeito narcoléptico não lhe chegasse pelo cordão umbilical. Todo o complemento restante da uma hora e meia da cirurgia fora o monitoramento da frequência cardíaca da Dani, e a observação de sua volta da anestesia.

Foram três meses de inferno astral, de angústia, de otimismo forçado, de choro escondido no chuveiro, de revolta, de rezas e de um inadmissível pensamento de quem estaria por nós na hora da morte, para contê-la e expulsá-la. Passou tanta coisa pela minha cabeça, que às vezes parecia frieza que eu me ocupasse em escrever sobre sentimentos solares nos quais o riso era permitido. Vendo a Júlia no berçário, e o quanto ela é viva, ativa, esperta e sequiosa pelo leite da mãe, como ela é perfeita e linda, sou possuído por uma enorme incapacidade de me abstrair além desse ponto onde, parece-me, foi nos dado o benefício da sobrevivência. Ás vezes, diante coisas assim, a única ação admissível é do silêncio. Li nesse fim de semana um poema de Eugênio Montale, em que ele diz do ofício da poesia. Esperamos que a poesia nos abra mundos, nos ofereça as opções de outras realidades elevadas, nos salve da mesmice terrena na qual padecemos. E ele conclui que a poesia só pode oferecer o som de um roçar de um galho,o caminhar ao lado de um muro que do lado de lá nos chega as vozes de crianças brincando e do vento soprando. A poesia pode nos oferecer a verdade do que não somos, e do que não queremos ser.

Na tarde da sexta-feira, a dra.J. foi visitar a Dani no quarto do hospital. Levou uma menina de quase dez anos, sua filha. A doutora nos disse,com a sua habitual voz cândida, que a menina nascera com autismo e outros problemas neuronais. Que fora internada na U.T.I. com septicemia, por quatro dias, em que parecia que o pior iria acontecer. Falava com sua treinada simpatia onde o sofrimento que havia por detrás de todos esses eventos fora firmemente silenciado e internalizado. No quarto arejado pelas primeiras chuvas que vieram refrescar esse grande verão de secas, uma leveza de reconhecimento tomara conta de todos nós, da Dani na cama, de mim, da doutora e da sua filha. Não sei o que éramos naquele momento, como estou destinado a nunca saber, mas não éramos mais desconhecidos cortêses comprometidos por um ato de compra e venda. Éramos íntimos no silêncio alcançado pela provação que o sofrimento havia nos submetido, e diante tanto peso deixado para trás, eu havia baixado as armas para as riquezas que tal condição me dava.